Francisco Alves, o Chico, entrou na sala de cirurgia. Ele tinha 30 anos, a febre reumática de uma infância pobre tinha destruído a sua válvula mitral – uma das quatro válvulas do coração –, mudando o sentido da corrente sanguínea e fazendo com que o sangue se acumulasse nos pulmões. Ele não conseguia mais ordenhar as vacas para a sua pequena fábrica de queijos, pois o cansaço era a cada dia maior. O seu futuro se tornou incerto e os seus pequenos filhos podiam se perder na obscuridade da orfandade.
Era 1986 e a cirurgia acabou. Passaram-se duas semanas e Chico voltou para casa. A sua vida ganhou novos ares e os seus pulmões respiravam aliviados e orgulhosos, com aquela válvula nova que tinha no coração. Esta foi manufaturada a partir das válvulas cardíacas de porcos e outros materiais tratados e estéreis. Ele estava contente, mas também intrigado, pois não entendia como uma válvula feita daquele pequeno animal, o qual ele alimentava cedo todas as manhãs, agora tinha mudado a sua vida, salvando-a. Naquela noite, deitou-se pensativo, já que não mais precisava de três travesseiros para dormir. Ele fechou os olhos e com um sorriso de paz, a nova válvula, em seus sonhos, contou uma história de amor e de coragem:
– Chico, minha história é uma daquelas que os homens chamam de improvável, impossível, sonho de um médico que sempre acreditou que a nossa vinda a este mundo foi para torná-lo um lugar melhor ….
Tudo começou com um jovem de 16 anos, chegado de terras andinas, de um pequeno país chamado Bolívia, que havia deixado para trás um querido pai e uma amorosa mãe. Trocou as altas montanhas andinas por montanhas de curvas suaves e calorosas de uma inocente Belo Horizonte. Na mala, só o sonho de ser médico.
Livre de sobrenomes de sociedade e de círculos médicos tradicionais, ele se dedica a ser um bom aluno. Como todo imigrante, as tradições do país de origem se perderam nas lembranças, mas os amigos de infância ele nunca esqueceria. Agora ele tinha um belo horizonte pela frente. Inquieto e com muita sede, vai alcançando seus objetivos. Mas a vida, em uma de suas voltas, chega com aquele amor inesperado, não programado, fora do cardápio e como um fresco café mineiro de ensolarada tarde, ele se apaixona por ela. Era cedo, mas o amor não segue calendários.
O jovem médico, ávido por conhecimento, vê nos Estados Unidos um lugar arrojado como ele, e volta a fechar a sua mala e inicia aquele caminho que já conhecia, o das despedidas e da nova língua, assim a solidão volta a ser sua companheira. Desta vez, deixa nestas terras mineiras um coração de delicada beleza.
O sonho americano tinha um alto preço a cobrar. Vietnã e seus horrores não escapam ao seu destino. Médico do Exército americano, aprende a salvar vidas da doença para a qual nunca havia sido treinado: o ódio. Mas ele não se contagiou, ao contrário, o seu coração estava cheio de amor e saudade.
O jovem médico decide voltar por ela, por aquele amor de estudante e se casa. A vida seria mais fácil a dois…
Com a sua companheira ao lado, ele procura os melhores hospitais e professores da época, se destaca, ficando entre os melhores da turma e alcança o posto de melhor residente no Hospital Mount Sinai, em Nova York. As luzes de Manhattan começavam a brilhar para ele, mas a família cresceu, agora são quatro, as dúvidas de levar uma vida americana não convencem, e fiel a família e a ela, regressa a Minas Gerais, pela porta pequena do “país das oportunidades” para o “país do futuro”.
Onze anos depois, os colegas da faculdade já estavam com trabalhos estáveis, e ele, novamente, procura por plantões, cirurgias e leciona técnica cirúrgica na Faculdade de Medicina da UFMG. Nos fundos de sua casa, em um pequeno quarto de estudos, ao final do dia e madrugada afora começava a se materializar o sonho: uma válvula cardíaca que fosse financeiramente acessível ao Terceiro Mundo, de fácil implante e com boa durabilidade.
Já tinha tudo o que ele mais amava, a sua delicada namorada e agora esposa tinha lhe dado uma família, uma linda família. Agora, era hora de virar o jogo e, com esforço titânico, monta uma pequena fábrica de válvulas cardíacas.
Com uma paciência sobrenatural, ele ensina pessoas simples e habilidosas a usar as mãos acostumadas a fazer bordados a “bordar” válvulas, formando uma equipe na qual a palavra impossível é tirada do dicionário. De mãos mineiras e simples saem as primeiras válvulas. Elas foram entregues a jovens cirurgiões que acreditavam no trabalho do engenhoso cirurgião. As válvulas cumprem o prometido e não falham! Algo que realmente não pode acontecer, pois há vidas em jogo.
A válvula começa a sua viagem na mala do jovem desconhecido, decolando desta terra de ferro até outros países da América Latina, Ásia, Europa, e, finalmente, a América do Norte.
Um hospital de doenças cardíacas é construído por “ela” e para “ela”, a Bioprótese Biocor. Aquele jovem cirurgião que saiu de Nova York para voltar a Minas pela porta pequena, virou anfitrião. Colegas americanos e europeus passaram a visitar Belo Horizonte para conhecer o seu trabalho e poder colocar o invento em corações pelo mundo. Contra todo conceito e contra todo o preconceito, ela funcionava muito bem, incomodando os grandes. O sonho de uma válvula acessível e de fácil implante vira uma realidade.
O tempo passou, os americanos compraram as patentes do grande projeto, mas o inventor não renunciou ao nome original. Ainda é Biocor, foi desenhada e produzida por um homem simples, que amou primeiro a sua família e a sua profissão, trabalhou contra todas as previsões que não fossem o sucesso, pois acreditava que o impossível poderia se tornar possível quando “há persistência, determinação e método” para se alcançar o valor maior de uma vida: amar o próximo mais do que a si mesmo.
Um desprendimento dos grandes.
Francisco acordou, se levantou com uma energia muito grande. Ele tinha uma enorme cicatriz no tórax e no coração uma linda história mineira e humana…
Crônica em memória de Mario Vrandecic, um homem apaixonado pela esposa – a qual lhe ensinou a amar esta terra de Minas Gerais –, um dedicado e amoroso pai e avô, cirurgião cardiovascular, professor, cientista e inventor. Foi fundador e diretor-geral (1985-2019) do Biocor Instituto, Nova Lima, Minas Gerais.
**Artigo escrito por Nestor Ivan Saavedra Teran, Cardiologista e intensivista do corpo clínico do Biocor Instituto
Crédito: Publicado originalmente no Jornal Estado de Minas.