O Brasil vem enfrentando a maior crise sanitária do último século sem um plano nacional bem definido por parte do governo federal para conter o avanço do coronavírus. Paralelamente, governos estaduais e municipais vêm adotando ações próprias para lidar com a Covid-19 e suas variantes.
Araraquara, município localizado no interior do estado de São Paulo, foi um desses governos que adotou medidas polêmicas no combate ao novo coronavírus e recebeu destaque nacional. Dentre essas ações, o Comitê de Contingência do Coronavírus da cidade optou pela adoção do lockdown na cidade.
De um lado, a prefeitura afirma que a medida foi um sucesso e levou a uma acentuada queda nos registros de casos e mortes pela doença. Do outro, o presidente da República, Jair Bolsonaro, criticou a ação, e compartilhou, em suas redes sociais, um vídeo que registrava o comboio que levava cerca de duzentas toneladas de alimentos aos vitimados pela política do ‘fique em casa que a economia a gente vê depois’.
– Nesse momento, comboio parte da CEAGESP rumo a Araraquara/SP, levando alimentos para aqueles vitimados pela política do "fique em casa que a economia a gente vê depois."
– Nossos parabéns ao Coronel Mello Araújo, permissionários da CEAGESP, @exercitooficial e @PMESP . pic.twitter.com/SDiLraPV5k
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) April 29, 2021
Entre a dualidade das medidas restritivas como alternativa para salvar vidas versus a economia da cidade, a Secretária da Saúde de Araraquara, Eliana Honain, fala com exclusividade a Healthcare Management sobre o lockdown, a economia da cidade e as ações tomadas para o combate à pandemia.
No fim de fevereiro, a crise hospitalar na cidade chegou a contabilizar 100% de ocupação UTIs por vários dias e pacientes transferidos para outras cidades. Com o lockdown, a cidade começou a registrar queda de casos, internações e mortes pela doença. Em 12 de maio, a ocupação de leitos de UTIs é de 82%.
Necessidade pública
Em fevereiro, Araraquara teve um aumento considerável de número de casos e de óbitos. Também havia sido confirmada a circulação da variante do coronavírus originária em Manaus, que estudos mostravam ser mais transmissível.
Diante do agravamento da situação e com base nos estudos científicos atestando a eficiência do isolamento social, o Comitê de Contingência do Coronavírus do município, criado em março de 2020 para deliberar sobre as ações de enfrentamento da doença, orientou a adoção do lockdown na cidade.
Foram proibidas, então, todas as atividades comerciais, incluindo postos de combustível, supermercados, que podiam funcionar apenas para delivery, prestação de serviços (inclusive agências bancárias) e industriais, seja por atendimento presencial ou para prática de atividades internas, externas, produtivas, de manutenção, de limpeza ou outra de qualquer natureza, exceto segurança. O transporte coletivo também não circulou no período.
O resultado, segundo Eliana, foi positivo. “Com certeza, o lockdown foi um sucesso. Os números dizem por si só”.
O confinamento ocorrido entre 21 de fevereiro a 2 de março, resultou na queda do número de diagnósticos positivos da doença, internações e óbitos. Entre o primeiro dia do lockdown, e o dia 11 de abril, 50 dias após o início do “fechamento” da cidade, segundo dados da prefeitura.
O número de casos confirmados em 15 dias caiu 66,2%: de 2.361 (de 7 de fevereiro a 21 de fevereiro), para 799 (de 30 de março a 11 de abril).
E a economia, como fica?
“Tudo o que é possível ser feito no âmbito da municipalidade, nós estamos fazendo para atender a demanda econômica”, afirma Eliana.
A prefeitura propôs, com aprovação na Câmara, um projeto de lei criando o Refis 2021 para beneficiar quem está sofrendo com crise econômica aprofundada pela pandemia.
“A proposta dá maior facilidade na quitação dos débitos e isso significa que pessoas físicas e jurídicas poderão acertar suas pendências em impostos municipais e evitar que os débitos sejam questionados judicialmente.”
Foram vários benefícios dados tanto para pessoas físicas como jurídicas, com parcelamento de dívidas, suspensão de ajuizamento de novas ações (a chamada execução fiscal), e prorrogação de prazos para o pagamento de impostos.
A prefeitura tem ampliado ainda programas sociais como Bolsa Cidadania, Rede de Solidariedade, Jovem Cidadão, Frentes da Cidadania, Apoiadores no Combate à Dengue e à Covid-19, programas de segurança alimentar e instituindo outros, como o projeto Filhos do Sol, para adolescentes e jovens em situação de risco. “O objetivo é garantir o socorro às famílias que mais precisam, que lidam com desemprego e a fome.”
Já no quesito geração de trabalho e renda, a secretária explica que a prefeitura investiu no projeto Coopera Araraquara, que visa a ampliação do cooperativismo na cidade e ações de economia solidária e criativa, além da grande ampliação de aquisição de alimentos direto do produtor, incentivando os pequenos agricultores.
Entretanto, para a secretária, é necessário que o governo federal, de fato, crie alternativas de apoio à retomada da economia nacional. “É preciso que linhas de crédito sejam criadas apoiando as empresas, principalmente das pequenas e médias. Isso já deveria ter sido feito. A descontinuidade do pagamento do Auxílio Emergencial aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados foi um erro seríssimo que precisa ser rapidamente corrigido, além da ampliação do orçamento federal destinado ao programa Bolsa Família.”
Além disso, Eliana é taxativa quando afirma que todas as medidas econômicas são paliativas. “A economia só retomará sua normalidade quando equacionarmos a pandemia.”
Atendimento preparado
Além da adoção do lockdown, a Prefeitura de Araraquara investiu no planejamento de todas as ações da cidade. As autoridades preparam a rede básica e expandiram o horário de atendimento em seis unidades em fevereiro, para dar conta da demanda.
Estas UBSs foram preparadas para atendimento de pacientes com sintomas leves de Covid-19, com treinamento do pessoal para aplicação do teste RT/PCR, para desafogar o atendimento de atendimento da Covid-19.
Além disso, a Secretaria da Saúde manteve os programas essenciais na Atenção Primária para não desorganizar o sistema.
Investimento em medicina diagnóstica
Outra ação da prefeitura de Araraquara foi o investimento em medicina diagnóstica. “Realizamos uma parceria com a Unesp, que mantém o laboratório da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, e investimos na aquisição de kits e de softwares.”
A prefeitura também firmou parceria com a Embraer, que doou 16 mil testes para o município. A parceria deu certo e, em maio de 2020, a quantidade de testes de pacientes feita em Araraquara foi maior que o dobro da registrada em todo o Brasil, quando analisada a proporção para cada milhão de habitantes. Foram 3.240 testes por milhão de habitantes no município contra 1.597 em todo o território nacional; diagnóstico mais amplo auxilia no combate à Covid-19.
Ação in loco
Eliana pontua que a Prefeitura de Araraquara também investiu em testagem por meio de duas frentes: busca comunitária e em estabelecimentos comerciais. Através da Secretaria Municipal de Saúde, intensificou a busca ativa de casos de Covid-19 em Araraquara no mês de abril.
O objetivo principal foi dimensionar a circulação do novo coronavírus nas diferentes regiões do município e, se necessário, reavaliar as estratégias de enfrentamento da pandemia.
“O reforço deste trabalho de busca ativa com testagem em massa amplia o acesso de assintomáticos aos testes e promove o isolamento dos positivados e seus contatos familiares”, explica Eliana.
Com esse objetivo, teve início a ação de testagem de RT-PCR na Rede Básica de Saúde, com foco nas famílias que residem em áreas de cobertura do programa Estratégia de Saúde da Família (ESF). De acordo com o plano de ação, os profissionais da saúde, divididos em 10 equipes, percorrem diariamente as áreas de cobertura do programa ESF, devidamente identificados, das 7 às 13 horas.
As equipes da Vigilância em Saúde também estão testando funcionários, proprietários e clientes de estabelecimentos sociais e comerciais da cidade.
“Se a testagem diagnosticar dois casos ou mais no mesmo estabelecimento, é iniciada investigação de surto e o local permanece fechado por até sete dias”, explica Eliana.
Além da testagem em massa, a Secretaria Municipal de Educação, com apoio da Secretaria da Saúde, vem aplicando testes de Covid-19 em todos os funcionários da rede municipal, incluindo os terceirizados, e também nos alunos, para garantir um ambiente escolar seguro.
E ainda são aplicados testes de Covid-19 nas barreiras sanitárias que vêm sendo realizadas em diferentes vias de acessos da cidade e no desembarque de passageiros no Terminal Rodoviário.
Vigilância territorial do Covid-19
Outra medida realizada em Araraquara foi a análise de 50 pontos de visita da rede de esgoto do município, pela Prefeitura e pelo Daae (Departamento Autônomo de Água e Esgotos), em parceria com a Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp Araraquara.
O novo método analisa, semanalmente, a presença do coronavírus em 50 postos de visita da rede de esgoto de Araraquara, espalhados por todas as regiões da cidade. O objetivo é verificar quais locais estão com maior carga viral, facilitando as ações de enfrentamento da pandemia por parte da Vigilância Epidemiológica.
“É uma forma de vigilância territorial da presença do coronavírus, porque as pessoas doentes eliminam o vírus na urina e nas fezes. A presença do vírus no esgoto já foi encontrada em outros locais e até usada para alguns estudos e sequenciamento.”
Eliana ressalta que tratamento de esgoto é suficiente para eliminar o vírus, mas até chegar na etapa do tratamento, “é possível coletar o material e utilizar para mapear a carga viral”. O estudo teve início no dia 6 de abril e os primeiros resultados devem ser divulgados em breve.
Informação como arma
“A informação é tudo, principalmente em uma pandemia”, afirma Eliana. Por isso, desde o início da pandemia, a Prefeitura de Araraquara adotou uma política de comunicação transparente que tem mostrado muita eficiência.
Segundo Eliana, a cidade mantém o diálogo constante com representantes dos diferentes setores econômicos, seja sindicatos patronais, entidades do comércio, trabalhadores, líderes religiosos e comunitários, comerciantes e, inclusive, com o Ministério Público.
“Através das redes sociais, com leituras ao vivo dos boletins, estamos conseguindo manter a população informada. Todas as ações de enfrentamento, orientações de prevenção, novas decisões e decretos são atualizados nas redes sociais da Prefeitura e também no nosso site.”
De acordo com a secretária, foi esse diálogo intenso que possibilitou as medidas restritivas. “Só assim conseguimos a participação da sociedade que, quando foi preciso, entendeu o lockdown pela gravidade do momento e colaborou.”