“Está faltando mais reflexão em relação a quais são as prioridades da Saúde em que a Inteligência Artificial pode ter um impacto maior”, defende Guilherme Rabello, do InCor
“A Inteligência Artificial (IA) é uma grande promessa para melhorar a prestação de atenção à saúde e medicamentos em todo o mundo, mas apenas se a ética e os direitos humanos forem colocados no centro de seu desenho, implantação e uso”. Essa são as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), dadas em junho deste ano.
Em entrevista à HCM, Guilherme Rabello, gerente comercial e de Inteligência de Mercado do InCor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP), dá a sua opinião sobre o atual uso da IA no Brasil, como essa ferramenta pode contribuir para uma medicina preventiva e ainda defende: “Quanto mais transparente a IA for, mais inteligente ela será. Não temos dar destaque à ela, temos que dar destaque ao que ela faz.”
1 – Qual a sua análise sobre o atual uso da Inteligência Artificial (IA) na saúde brasileira?
A IA atrai a nossa atenção, porque ainda há um misto de desconhecido, de uma coisa meio fantástica e uma percepção de que talvez ela seja uma panaceia para muitos dos nossos problemas operacionais e intelectuais.
Parece que todo mundo acha que a IA veio para repor ou até mesmo solucionar os problemas que nós não conseguimos resolver. E isso não é correto.
A IA ainda está em seus primórdios, se é assim que poderíamos dizer. Há uma diferença entre ter uma tecnologia avançada e ter uma tecnologia aplicada a soluções que estão em desenvolvimento.
A Inteligência Artificial está sendo aplicada, tanto no público quanto no privado, basicamente em processos de automação e de repetição, por exemplo, auditoria de contas, análises de exames.
Nesse último caso, a IA compara imagens saudáveis e não saudáveis e identifica quando há uma suspeita que possa indicar um tumor.
Essas são áreas em que eu vejo a primeira aplicação da IA, melhorando processos já conhecidos.
2 – E como seria, então, o próximo estágio da IA?
Seria o seu uso mais sofisticado: quando a máquina tem alto conhecimento e compreensão, identificando, por exemplo, modelos preditivos com alta precisão de comportamento. Mas temos um campo para percorrer.
A IA está sendo usada para automatizar processos. É o que chamamos de machine learning, onde há o aprendizado através de um processo repetitivo do padrão de análise e, a partir disso, desenvolve-se uma perícia.
Isso aconteceu no setor bancário, onde há a avaliação para dar o crédito ou não, avaliando o histórico e o comportamento do cliente e, então, se ele está dentro do padrão ou não.
A máquina consegue fazer isso a partir de um determinado comportamento com mais excelência do que a gente.
3 – Qual é a nossa maior deficiência para avançar quanto à IA?
O que nós não temos é escala de implantação, pois não temos investimentos, diferentemente de outros países.
Temos centros de excelência, mas ainda não estamos no mesmo nível que outros países justamente por uma questão financeira.
4- Quais são os principais desafios da saúde brasileira quanto ao uso da IA?
A IA poderia já ser aplicada em setores onde empregamos muita gente para fazer um processo repetitivo. Por exemplo, agendamento de consulta em escala do SUS.
A otimização de agenda para atender melhor os pacientes é um importante desafio e dependemos de pessoas para isso. A IA pode auxiliar em uma melhor distribuição no agendamento de acordo com o perfil do paciente.
Há também a utilização da IA em uma pré análise de dados clínicos para indicar potenciais pacientes com riscos precoces.
Nesses casos, se conseguíssemos ter precocemente esses dados, pacientes em estágios ainda iniciais de doença seriam tratados e custariam menos para o sistema.
Isso é uma mudança radical do ponto de vista de metodologia assistencial. Se eu trouxer essa visão da IA para uma análise dos dados, eu consigo ter uma visão de saúde preventiva.
5 – Sobre reduzir custos, quais outros cenários você vislumbra o uso de IA?
Saúde não é só cuidar de gente, é também fazer gestão de ativos.
Na pandemia estamos vendo o uso de IA na logística, no uso de compras mais racionais, ou seja, há várias soluções no mercado que são usados em outros seguimentos que nós deveríamos adotar rapidamente para a saúde.
E isso, com certeza, envolve sustentabilidade. Além disso, o uso de IA nos permitiria usar parte da nossa força de recursos humanos dedicada às atividades operacionais para serem devolvidas e priorizadas para as áreas assistenciais.
6 – Quais têm sido os esforços e soluções do InCor para levar IA no dia a dia de seus atendimentos?
No Incor, estamos desenvolvendo diferentes ferramentas para o uso de IA aplicada à saúde.
Um desses projetos é o que chamamos de visão rápida do paciente, onde o médico acessa os dados principais do paciente logo no atendimento, sem ter que abrir o prontuário inteiro dele.
Para isso, desenvolvemos mecanismos para que a IA busque dados essenciais para aquele perfil de paciente e os apresente de forma rápida para o médico.
Ou seja, ao invés do médico perder tempo pesquisando a informação, a máquina extrai esses dados e os devolvem de uma forma estruturada.
7- Há outros setores que o InCor esteja investindo o uso de IA?
Sim! Estamos aplicando IA no setor de diagnóstico de imagem.
Por exemplo, em pacientes com problemas respiratórios é muito comum que eles façam o exame de Raio X.
Desenvolvemos um aplicativo que faz a identificação no Raio X de pacientes com potencial de pneumonia grave.
A IA analisa e entrega para o radiologista um pré laudo que pode indicar se um paciente tem risco de doença. O mesmo fizemos com a Covid-19, para a identificação de pacientes com problema pulmonar.
Também desenvolvemos uma técnica que, a partir de exames laboratoriais, o software de IA detecta, na imagem que é gerada, quais são os dados sensíveis ou não sensíveis.
Por exemplo, eu tenho informações do paciente como idade, que são dados sensíveis, mas eu tenho outros dados que não são sensíveis como o tamanho da aorta, pulmão, dados técnicos.
Criamos essa diferenciação de dados para que a máquina aprenda sobre a doença e não sobre o paciente.
8 – A IA é uma grande promessa para melhorar a prestação de atenção à saúde e medicamentos em todo o mundo, mas apenas se a ética e os direitos humanos forem colocados no centro de seu desenho, implantação e uso, de acordo com as novas orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Como você avalia essa questão?
Não há como falar de tecnologia sem ética, pois é ela que determina o balizamento do cuidado humano.
A ética determina, inclusive, como a gente vai equilibrar as desigualdades, porque senão podemos ter determinada tecnologia sendo utilizada por uma minoria, e isso também não é ético e aceitável.
A ética nos leva a considerar no momento de desenhar as soluções, que as mesmas sejam acessíveis. Ou seja, é preciso ter soluções que tem em escala e nem sempre vamos privilegiar as soluções de IA.
Às vezes, temos que incentivar que determinadas soluções sejam vistas do ponto de vista social. Eu não vejo hoje como a IA esteja dissociada de uma discussão ética de seus organizadores, tanto dos que aplicam, como os que se beneficiam dela.
É uma questão que antecede a própria necessidade do seu uso. Podemos ter uma boa dosagem do se determinada coisa nós deveríamos ou não usar ou manter ainda a interação humana como prioritária.
9 – Como podemos maximizar os benefícios da IA, minimizando seus riscos e evitando suas armadilhas na saúde?
Primeiro, deveríamos avaliar o potencial de impacto da solução da IA versus o público beneficiário. Ou seja, eu estou usando isso por uma minoria ou por uma maioria?
Segundo, avaliar se a introdução da solução de ferramenta tem a exponencialidade de privilegiar, por exemplo, prevenção versus a detecção muito tardia.
Então, se eu desenvolvo soluções que ajudam a aprimorar o cuidado primário e não terciário, estaremos usando a IA da forma mais salutar possível.
10 – Na sua opinião, quais são as verdadeiras questões que nós estamos querendo resolver com a IA?
A minha visão é de que nós estamos muito preocupados em achar um problema para uma solução que eu já criei. Como eu encaixo uma ferramenta dentro de um cenário da saúde? Nós estamos com a dificuldade de fazer análise a partir das perguntas certas.
Está faltando mais reflexão em relação a quais são as prioridades da saúde em que a IA pode ter um impacto maior. E aí você pode direcionar o desenvolvimento para isso.
Já que hoje nós temos o potencial de desenvolver soluções inteligentes, sermos inteligentes para sabermos que soluções queremos desenvolver.
Para finalizar, a IA tanto mais é inteligente quanto mais transparente ela for. A gente não tem que dar destaque a ela, temos que dar destaque ao que ela faz.