Após receber críticas, projeto de lei que tramita no Senado passou a discriminar níveis de risco para o uso dessa tecnologia na área da saúde
Segundo o dicionário Merriam-Webster, o mais antigo dos Estados Unidos e um dos mais prestigiados em língua inglesa, um dos significados contemporâneos para “disrupção”, velha palavra latina sinônima de “quebra”, “rompimento”, “desordem”, é desafiar com sucesso, por meio da inovação, uma estrutura bem-estabelecida, alcançando não apenas uma vantagem competitiva, mas mudando fundamentalmente a natureza daquela estrutura.
A julgar por essa definição, talvez não exista fenômeno mais “disruptivo” que o surgimento e popularização das inteligências artificiais (IA). Políticos, estudiosos e nomes fortes do mercado tecnológico vêm intensificando o debate sobre os impactos sociais da IA e até sobre a necessidade de limites para o quanto “poderosa” permitiremos que essa tecnologia se torne.
Do ponto de vista do interesse público, o mundo inteiro está às voltas com o problema da regulação das inteligências artificiais. O dilema parece ser o mesmo em toda parte: qual deve ser o ponto de equilíbrio da lei, de modo que os direitos da população sejam preservados e, no entanto, o desenvolvimento tecnológico continue desinibido?
Como não poderia deixar de ser, esse problema aparece também na área da saúde. Ferramentas de IA já são realidade nos hospitais. Ao longo dos próximos anos, serão ainda mais ubíquas. Aqui o desafio regulatório se torna mais sério, já que na saúde lidamos diretamente com a segurança, a privacidade e, sobretudo, com a vida das pessoas.
Por isso é bem-vinda a iniciativa do Projeto de Lei 2338/2023, que tramita hoje no Senado e busca regular o uso da inteligência artificial no país, inclusive na área da saúde.
Ferramentas de IA já são usadas – ou têm o potencial de serem usadas – em toda a cadeia da saúde. Elas podem fornecer apoio à pesquisa clínica ou à elaboração de diagnósticos a partir de exames de imagem. Podem estar presentes na gestão das filas de um sistema, na montagem da escala de trabalho de um hospital ou no acompanhamento rotineiro de um paciente, melhorando sua aderência ao tratamento prescrito.
Como se nota, são funções muito diversas, das mais burocráticas às mais críticas, com níveis também diversos de risco à segurança dos pacientes e à saúde pública. A redação original do PL cometia o equívoco de categorizar todas as aplicações de IA na saúde como de “alto risco”.
Isso certamente iria engessar o setor, dificultando a inovação, o ganho de qualidade e eficiência para os pacientes e, é claro, o potencial econômico desse mercado em pleno crescimento. Até 2030, a saúde digital deve movimentar globalmente algo em torno de US$ 850 bilhões. Basta observar que na metade deste ano, a FDA, órgão regulatório dos EUA, já havia liberado 692 dispositivos médicos que utilizam IA ou machine learning.
Felizmente, o Congresso se dispôs a ouvir as demandas dos profissionais da área. Tive a honra de participar de uma audiência pública na Comissão Temporária sobre Inteligência Artificial (CTIA) sobre o impacto do PL 2338/2023 na saúde, onde pude expressar, junto a outros colegas da área, minhas preocupações referentes à redação genérica do texto.
A partir dos trabalhos dessa comissão, o senador Marcos Pontes apresentou um substitutivo ao PL que estabelece gradações de risco para o uso de IA na saúde.
É um avanço. Afinal, a legislação brasileira já discrimina níveis de risco. Esse é um critério levado em conta pela Anvisa, por exemplo, na liberação de novas tecnologias. A versão mais recente do PL 2338/2023 não introduz, portanto, qualquer novidade na gestão do setor, e órgãos como a SEIDIGI (Secretaria de Informação e Saúde Digital), a ANS e a própria Anvisa têm capacidade técnica para classificar o risco de cada nova aplicação de IA.
Ademais, é o que recomenda a experiência internacional. A principal inspiração do PL 2338/2023 é a legislação da União Europeia para IA, criada em 2021. Essa lei, a primeira do mundo sobre o tema, já estabelece gradações de risco para o uso de IA na saúde.
Órgãos internacionais como a OMS e a OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde) também oferecem parâmetros que o Brasil pode consultar para elaborar seus próprios critérios de classificação.
A regulação de uma tecnologia como a IA nunca será tarefa fácil, tanto pela velocidade das mudanças quanto pelo fato de que toda nova lei para o setor estará inevitavelmente obsoleta em alguma medida: regula-se hoje um mercado cujo verdadeiro potencial desconhecemos. Em matéria de IA, ainda estamos tateando no escuro.
Daí a importância de o legislador estar sensível às demandas dos profissionais e estudiosos da área, incorporando, como no caso do PL2338/2023, suas principais sugestões. A regulação da inteligência artificial, sobretudo em um setor crítico como o da saúde, é bem-vinda e necessária, mas ela precisa garantir a segurança dos pacientes sem frear a inovação no que hoje é o campo mais “disruptivo” da tecnologia digital.
Médico, presidente do Conselho do Instituto de Radiologia (InRad) e presidente do Conselho de Inovação (InovaHC), ambos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, e presidente do Instituto Coalizão Saúde (ICOS).