“A Diferença entre Contabilidade de Custos e Gestão de Custos na Saúde”, por Enio Salu
A figura ilustra o cenário real da gestão de custos, que infelizmente não é adequadamente entendido por uma parte dos gestores da área da saúde:
- Na semana passada encerramos a segunda turma de Gestão de Custos para Operadoras vinculadas a Unimed FESP – Federação das Unimeds do Estado de São Paulo, e ao final um dos participantes, ao elogiar o curso – o que sempre me deixa imensamente agradecido – comentou algo que resume o que havíamos discutido sobre “uma confusão” presente na maioria das empresas da área da saúde;
- Disse que da sua equipe na primeira turma indicou para fazer o curso o gestor financeiro, porque achava que custo era “algo afim” desta área, mas que teve feedback que o conteúdo era mais adequado para os gestores das áreas de negócios;
- Então se inscreveu na segunda turma, e afirmou que o que foi discutido era de muita utilidade para muitas coisas que estão sob responsabilidade dele, que não é o gestor financeiro;
- Raramente fiquei tão contente … satisfeito … se acho que posso auxiliar gestores da saúde em relação ao tema, é exatamente nisso: gestão de custos é da área de negócios e não da contabilidade da empresa !
Vale a pena … muito a pena … detalhar um pouco deste paradoxo, que afasta os gestores do tema por acharem complexos e/ou que não são da sua alçada:
- Prejudicando muito a gestão tanto de operadoras de planos de saúde, secretarias de saúde, hospitais, clinicas, centros de diagnósticos, consultórios …
- Que, ou perdem oportunidade de negócios, ou pior, têm prejuízo por não analisarem adequadamente precificação, pacotes … se vale a pena fazer internamente ou terceirizar … “achando” ao invés de “ter certeza” !
Primeiro vamos entender o papel da contabilidade na área da saúde:
- A maioria absoluta das empresas que atuam na área da saúde … seguramente próximo de 100 % … primeiro porque das ~650 mil empresas, perto de ~500 mil delas são de pequeníssimo porte, e segundo porque a quase totalidade se enquadra no regime de “Lucro Presumido”, onde o cálculo dos tributos federais é feito com base apenas no faturamento … por isso “maioria absoluta” não usa contabilidade como instrumento gerencial;
- Apenas se obrigam a produzir os mapas legais e ter os cálculos de lucro e prejuízo feitos por alguém que saiba fazer (o Contador) e tenha sua competência reconhecida por isso (tenha CRC);
- A maioria absoluta das empresas que atuam no segmento nem têm Contador no seu quadro de funcionários … contrata um escritório de contabilidade para fazer o que a lei manda !
- É muito mais barato pagar 1 salário-mínimo para o escritório (há controvérsia em relação ao mínimo que se paga), do que contratar um profissional para “nem ter trabalho suficiente” para ocupar as suas horas de trabalho !!
Um mesmo escritório de contabilidade contratado, faz a contabilidade de hospitais, clínicas, centros de diagnósticos, operadoras de planos de saúde, açougues, mercados, padarias, postos de gasolina …:
- Para fazer o que ele deve fazer para cumprir a lei não necessita conhecer a atividade do seu cliente … é comum você entrar nestes escritórios e ver aquelas caixas de papelão em armários com balanços, guias de pagamento, demonstrativos … de todo o tipo de empresa … e não há nada de errado, antiético ou imoral nisso, é bom que se diga !
- No lucro presumido, como de fato ele tem muito pouca coisa para contabilizar (basicamente o faturamento, pró-labore, e a folha de pagamento dos funcionários) não é incomum você ver coisas contabilizadas, no mínimo, “esquisitas”;
- Ninguém me contou … em diversas consultorias me deparei, por exemplo, com despesas contabilizadas em um hospital referentes ao conserto de colheitadeira (você não leu errado … não quis escrever empilhadeira … foi colheitadeira mesmo), ao pagamento do caseiro da casa do sítio … de combustível especial para lanchas (isso mesmo … lancha … não ambulância … aquele meio de transporte que a gente utiliza para navegar);
- A contabilidade contabiliza tudo … qualquer movimentação financeira de entrada e saída de dinheiro … operacional e não operacional … sejam elas resultado da atividade da empresa, ou das “lambanças” que os sócios fazem ao misturar sua vida pessoal com a vida da empresa … em pequenas empresas quando a gente não vê o pagamento do cartão de crédito do dono fica “até desconfiado”;
- Isso ocorre porque nesta maioria de empresas pequenas e sem necessidade de rigor contábil (lucro presumido) pelas contas das empresas passam gastos da empresa, dos sócios, dos parentes dos sócios, dos pets dos sócios … e é bom parar a lista por aqui !
Poucas empresas têm o privilégio de possuir um departamento de contabilidade, com contador dedicado somente à empresa, onde você consegue tirar do razão e do diário alguma informação útil que não seja o faturamento:
- Faturamento, que por sinal, você nem precisaria da contabilidade para conhecer: basta entrar no site da prefeitura com o login e senha da empresa e listar;
- O login e senha do site da prefeitura que não é raro que ninguém na empresa saiba qual é … não é raro entrar em um destes escritórios e ver “uma gaveta lotada” de certificados digitais PF e PJ de várias empresas … que a empresa só tem para a contabilidade utilizar porque a prefeitura e a receita estadual e federal exigem !!!
São raras as empresas que podem se dar ao luxo de encomendar à sua contabilidade informações sobre rentabilidade, custos, despesas … custo por procedimento então: “é piada” !!
No balancete, nos relatórios demonstrativos de resultado, nos registros contábeis, você vê dados de custos e despesas:
- Que servem para a “contabilidade da empresa”, para apurar o resultado da empresa, para apurar o lucro e prejuízo da empresa e calcular os tributos;
- Isso é obrigatório, necessário e deve ser feito da forma com o contador faz … e geralmente ele faz isso com maestria !
- Ela (a contabilidade) apura, tabula e sinaliza … mas não tem qualquer ação de gestão sobre os custos e despesas;
- Os mapas que a contabilidade produz servem para a empresa apresentar no banco se for pedir um empréstimo, ou para apresentar na habilitação de um cliente que pede os mapas … e não usa para nada a não ser “cadastrar” na lista de documentos que a “diretoria manda pedir”.
Mas não servem para gerir os custos e despesas da empresa:
- O gestor dos gastos (custos e despesas) é o gestor das unidades de negócios: o superintendente / diretor / gerente … que gasta para produzir o que empresa espera que sua área de responsabilidade entregue;
- O gestor dos custos da enfermagem é a enfermagem … do centro cirúrgico o responsável técnico pelo CC … da UTI, Farmácia … do PME é o gestor da carteira PME …
- Se a empresa gasta alguma coisa para atender pacientes … se a empresa gasta alguma coisa para vender planos de saúde … se a instituição gasta alguma coisa para prover saúde à população … é o responsável pela “área de negócios” que é o responsável pela gestão dos gastos … dos custos e das despesas … e não a contabilidade !
Ao gestor da unidade (ex: da UPA, do Pronto Socorro, do Plano Coletivo X …) só interessam receitas e gastos operacionais:
- O “dinheiro que sai” … o gasto … seja custo seja despesa … para que ele atenda paciente, gere a sinistralidade de uma carteira de beneficiários … isso é operacional;
- O “dinheiro que entra” em contrapartida ao que ele entrega (o tratamento do paciente, o atendimento do beneficiário …) … isso é operacional;
- Somente o que diz respeito a “operação” … que está sob sua responsabilidade.
Se:
- A empresa resolve “montar a maior árvore de Natal da cidade” para fazer pirotecnia … o que o responsável pelo ambulatório, pelo plano individual da operadora, pela UBS da prefeitura … o que estes gestores têm a ver com isso ?
- O dono resolve tirar mais dinheiro da empresa para trocar de carro … o que os gestores das unidades têm a ver com isso ?
- Os donos resolvem trocar o equipamento que não necessita ser trocado … o que os gestores das unidades que utilizam o departamento têm a ver com isso ?
- O conselho de administração resolve distribuir ou não lucros aos acionistas … o que os gestores das unidades têm a ver com isso ?
A resposta às três perguntas: nada ! … absolutamente nada … o que ele gasta para tratar o paciente, para gerir a sinistralidade de um plano, para dar acesso à saúde à população não vai mudar em função disso … isso sim são gastos que o gestor pode ser cobrado, porque ele governa .. direta ou indiretamente … em maior ou menor escala … mas governa: é responsável !!
Quando você apresenta um relatório de custos para um gestor, que aponta que o custo da área dele aumentou, e ele percebe que “o vilão” do aumento:
- Foi um rateio de gastos com árvore de Natal … ou um rateio de gasto de água, e a área dele não tem uma única torneira …
- Foi a depreciação de um equipamento que ele não quis comprar … ou que já estava lá quando ele começou a fazer a gestão da área …
- Foi qualquer coisa que ele não tem como governar …
- … ou ele fica, digamos assim, “chateado” em ter que justificar … ou não dá a menor atenção …
- Nos dois casos a empresa está gastando recursos de gestão com o gestor inutilmente que poderiam estar sendo empenhados para alguma coisa útil !!
Os relatórios contábeis têm que fazer estas coisas: amortização, depreciação, provisões …
- Que os gestores das unidades de negócios nem sabem direito do que se trata … o que é depreciação ? Resultado de algum ato de vandalismo, ou ofensa moral ?
- Mas o gestor só precisa saber se o que ele gasta para fazer aquilo que pedem que ele faça, é muito ou pouco, onde pode ser reduzido e está sob responsabilidade dele.
Os relatórios contábeis, na maioria absoluta das vezes, não acompanham com a mesma velocidade as mudanças que ocorrem na empresa … que o gestor sabe que ocorreu e necessita da análise do novo cenário … explicando:
- A contabilidade trabalha com um plano de contas “departamentalizado” … hierárquico … mas a saúde funciona de forma “matricial” e com muito … mas “muito dinamismo”;
- Em um hospital o centro cirúrgico é uma unidade “sem receita direta” … o hospital não vende cirurgia … vende internação, ou hospital-dia, ou atendimento ambulatorial para fazer cirurgia;
- Em um hospital a farmácia é uma unidade “sem receita direta … o hospital não vende medicamentos … vende o tratamento que utiliza os medicamentos;
- Em um hospital a internação é uma unidade de negócios: tem receita direta … o hospital vende a internação do paciente … mas a internação só ocorre se as áreas centro cirúrgico, farmácia … derem apoio à internação;
- Mas a farmácia, por exemplo, dá apoio para todas as unidades de negócios com receita: internação, hospital-dia, pronto socorro, SADT, ambulatório … o centro cirúrgico também, que por sua vez é servida pela farmácia;
- Veja que associamos a farmácia às unidades de negócios (ex: internação) e as outras que não são unidades de negócios (ex: centro cirúrgico);
- E hoje a farmácia é central, mas durante a pandemia “cismaram” de fazer uma satélite só para pacientes COVID …
- Dividiram a UTI que era uma só em duas, uma para pacientes COVID e outra não … estas mudanças ocorrem na rotina nos serviços de saúde !
- Mas o plano de contas da contabilidade, em quase 100 % das vezes, fica estático … não vê nada disso;
- Pede para o contador fazer estes ajustes todos os meses durante o mesmo exercício no plano de contas para ver se ele tem “braço” para isso … vai lá ver !!!
Então discutimos com os gestores que eles devem utilizar uma metodologia simples para apurar:
- O resultado das unidades de negócios, que misturam estes departamentos … e ele sabe muito bem como eles se misturam … ninguém melhor do que ele sabe disso, porque é ele que gere a unidade de negócios;
- O custo (médio e unitário), utilizando o método mais simples entre os dois sempre.
Dizemos a eles … se você não tem uma contabilidade de custos que possa fazer o que necessita, não utilize isso como desculpa: faça da forma mais simples … mas faça;
- O gestor não necessita da precisão absurda que a contabilidade se obriga a ter;
- A contabilidade precisa fazer cálculos precisos segundo preceitos consagrados, porque se não fizer isso o contador se responsabiliza perante o fisco;
- O gestor da unidade de negócios não necessita calcular a rentabilidade e o custo com a mesma precisão que a NASA calcula a velocidade do foguete para entrar em órbita e não se perder no espaço … não tem necessidade alguma de acertar na “segunda casa após a vírgula”.
O gestor precisa utilizar uma metodologia simples porque analisar se vale a pena criar um serviço próprio o credenciar um terceiro … qual o valor mínimo (ponto de equilíbrio) de preço para não ter prejuízo … se o preço que o convênio / SUS quer pagar é viável em função do seu custo:
- Não será 1, 2 … nem 5 % de erro no cálculo que vai inviabilizar estas análises;
- Mesmo que estiver 5 % errado, o que o gestor vai gastar para fazer estes cálculos de forma simples é muito menos do que a oportunidade de aceitar ou não um pacote, de manter aberta uma unidade que não tem como dar lucro … com parâmetros adequados de análise … não na “base do acho”;
- E deve ter agilidade para fazer quando necessitar, sem depender de ninguém, porque negócios não esperam !
E fechamos a discussão perguntando: de que vale calcular custos e despesas se não fizer nada para controlar ?
- Somente o gestor da unidade sabe como reduzir o custo do processo, as despesas do departamento;
- Somente o gestor da unidade e sua própria equipe sabem o que ocorre lá dentro, o que pode ser mudado, o que não pode ser mudado para não “passar por fortes emoções”;
- É raridade da raridade se descobrir um contador que tenha propriedade para sugerir alguma mudança em algum processo de alguma unidade de negócios … ele está lá na contabilidade e não na unidade de negócios;
- Se for um terceirizado, não perca tempo escutando o que ele diz … utilize os números que servem para você que ele produziu (devem estar muito bem tabulados), mas não perca muito tempo com as sugestões que ele der sobre mudanças em processos de organizacionais … discuta os números com a sua equipe que os resultados virão “anos-luz” mais rápidos e precisos !
- Os cálculos servem para sinalizar: “olha … o que está caro é isso aqui” !! … mas somente o gestor da área sabe se é possível ou não mexer naquilo, e o que pode ser feito !!!
Para isso o gestor e sua equipe devem estar com foco em reduzir ao máximo o desperdício !
- É o desperdício que aumenta o custo e a despesa … se combater o desperdício, reduzirá o custo e a despesa naturalmente;
- E as técnicas para isso estão no Lean … não é necessário inventar nada: Poka Yoke, Just in Time, Kaisen, Kanban, Monomossu e 5S;
- A única coisa a acrescentar nos conceitos fundamentais do Lean é a Comunicação Amigável.
Isso posto … fica fácil entender porque fiquei tão contente com o comentário do participante nos últimos minutos da segunda turma na semana passada, a ponto de postar aqui … foi disso que tratamos !
Ouvir isso dele, um profissional experiente e que “é do ramo”, e utiliza o chapéu de operadora e de gestor de rede própria (serviços de saúde) foi muito gratificante !!
Só lembrando … existem 2 livros para download gratuito que abordam o tema … basta entrar no site e baixar … não é necessário login e senha, nem pedir emprestado para o contador o “certificado digital”:
- Modelo GCST – Gestão de Custos de Produtos Hospitalares, de Clínicas e de Consultórios – ISBN: 978-85-917645-8-7 – www.escepti.com.br/gcst
- Modelo GCPP – Gestão e Controle de Projetos e Processos – ISBN: 978-85-917645-2-5 – www.escepti.com.br/gcpp
Enio Jorge Salu tem especializações em Administração Hospitalar, Epidemiologia Hospitalar e Economia e Custos em Saúde pela FGV – Fundação Getúlio Vargas. É professor em Turmas de Pós-graduação na Faculdade Albert Einstein, Fundação Getúlio Vargas, FIA/USP, FUNDACE-FUNPEC/USP, Centro Universitário São Camilo, SENAC, CEEN/PUC-GO e Impacta. Coordenador Adjunto do Curso de Pós-graduação em Administração Hospitalar da Fundação Unime. Também é CEO da Escepti Consultoria e Treinamento e já foi gerente de mais de 200 projetos em operadoras de planos de saúde, hospitais, clínicas, centros de diagnósticos, secretarias de saúde e empresas fornecedoras de produtos e serviços para a área da saúde e outros segmentos de mercado.