“A Diferença Entre Precificação Profissional e Loteria em Serviços de Saúde”, por Enio Salu

Referências: Geografia Econômica da Saúde no Brasil e Jornada da Gestão em Saúde no Brasil

(*) todos os gráficos e ilustrações são partes integrantes do Estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil e do material didático dos cursos da Jornada da Gestão em Saúde e da Escepti

As tabelas ilustram o preço médio de alguns itens em âmbito ambulatorial, pago por operadoras de planos de saúde em 2 regiões diferentes do Brasil.

No início de um projeto de consultoria, nas aulas em turmas de pós-graduação, em cursos da Jornada da Gestão em Saúde … é sempre muito comum ouvir a pergunta: quanto é o preço médio de XPTO ?

  • A resposta sempre irrita o interlocutor, porque é “depende”;
  • Os preços na área da saúde variam muito, dependendo de vários fatores;
  • O que diferencia um gestor da saúde de outro, quando o assunto é preço, não é fazer uma média, saber o mais alto e o mais baixo preço  … isso raramente tem alguma serventia;
  • A habilidade do gestor de precificação é medida pelo entendimento dos parâmetros que fazem com que os preços variem.

É mais ou menos assim:

  • Não adianta coletar os preços do quilo de coxão mole nos mercados e açougues como único parâmetro para saber por quanto eu vou vender a carne no meu açougue;
  • Onde estou, por quanto eu compro, quem vem comprar comigo, como eu atendo o cliente, como eu corto e embalo a carne, como eu conservo o produto, qual a confiança que o cliente tem em mim, quanto famosa é a minha marca …
  • … e mais recentemente … o preço também varia de acordo com o interesse que o cliente tem em saber a origem do produto, o compromisso da empresa com a sociedade … e assim vai …
  • O coxão mole vem da mesma parte do mesmo bovino, que dois açougues podem pagar a mesma coisa para o mesmo frigorífico … mas o preço do quilo do bife ou do pedaço não se resume a isso … longe disso !
  • Assim também é com o “produto saúde” … um produto como outro qualquer !

Ao iniciar mais um projeto de apoio no redesenho da precificação em cliente “caiu a ficha” de que perdi a conta de há quanto tempo faço isso … quantos projetos … quantas aulas e cursos sobre o tema … e como a complexidade dos sistemas de financiamento vão exigindo que os serviços de saúde, muito particularmente os hospitais … vão necessitando cada vez de profissionalização nisso.

Foi-se o tempo em que um serviço de saúde podia “se dar ao luxo” de fazer a média de preços de quem vende o mesmo produto e achar que se “precificar da média para cima” não vai ter prejuízo … isso pode ser “o fiel da balança no rombo” da rentabilidade da empresa !

A questão fundamental é que as coisas na área da saúde não são iguais ao que acontece em indústrias, no comercio, no agronegócio … cada um tem suas particularidades … e a saúde tem mais particularidades:

  • Não é questão de supervalorizar … não existe interesse algum nisso;
  • A questão é que os preços no segmento são governados por um volume de parâmetros muito maior, e condições que variam sensivelmente quando a gente “anda” alguns poucos quilômetros de distância;
  • Do esquema básico acima, o que mudou nestes anos todos foi muito pouco … mas o que se está dentro de “cada quadrado”, evoluiu da água para o vinho, transformando “os aviões” da gestão comercial do passado que não se atualizaram em “dinossauros” do presente;
  • Na verdade “a gente brinca” dizendo que o que está dentro “dos quadradinhos do esquema” até nem é o problema … o problema está entre os quadradinhos … no que os americanos chamam de “white spaces” dos esquemas … é aí que “mora o perigo”;
  • Os white spaces podem ser claros ou não dependendo do quanto o gestor da precificação realmente conhece do mercado … o que está fora do foco da visão … algo que existe, está bem evidente, mas invariavelmente “o desatento só vê o que que quer ver” e ignora o resto !
  • A esta “espécie de cegueira” deram o nome de “visão sistêmica” … tem “um zilhão” de conteúdos na Internet sobre visão sistêmica … é legal e “muito divertido” assistir vídeos ilustrativos sobre visão sistêmica … para quem nunca viu, vale muito a pena ver !

Utilizando-se do esquema a gente costuma estressar a discussão de precificação em saúde chamando a atenção que o custo é importante, mas não define o preço:

  • Fatores comerciais são tão importantes quanto;
  • Na verdade existem cenários que dependem do contexto que fazem com que o custo seja mais importante, de igual importância ou insignificante em relação aos fatores comerciais envolvidos … e vice-versa !

Isso é o fascinante … o motivador … o desafiador … na precificação da área da saúde:

  • Não é “uma decisão binária” como na indústria … como no comércio … onde invariavelmente se o produto não dá lucro não interessa … é inviável;
  • Na saúde os produtos são avaliados sob este aspecto sim … também … mas é bem comum trabalharmos com produtos deficitários dentro de uma cadeia de valores superavitária, ou para viabilizar a cadeia de valores, e/ou outros produtos …
  • … e/ou para viabilizar estruturas produtivas e “reter capital humano” … parte dos profissionais que atuam na área da saúde, proporcionalmente à demanda da saúde, são raros … difíceis de substituir … as vezes “a gente dá um docinho para o talento” porque ele traz resultado, ou “é perigoso” que ele goste mais do “docinho” do outro e vire o concorrente !
  • E isso tudo está muito longe de “ser loteria” … tem método … e os parâmetros são lógicos e evidentes … facilmente comprovados “por números” !

Quem “é do ramo” sabe:

  • Os negócios na saúde, especialmente em hospitais, não são regidos por uma estrutura hierárquica … ah se fosse ! … seria fácil adaptar os modelos de outros segmentos se assim fosse !
  • São matriciais … uma mesma unidade pode ser geradora de receita ou de apoio … alguns negócios são definidos pelos tipos de atendimento prestados aos pacientes … alguns negócios são definidos pelas especialidades … alguns pelas fontes pagadoras … alguns pela necessidade da integração da parte comercial do serviço com a área de ensino e pesquisa …
  • E a maior parte dos hospitais se obrigam a mesclar todas estas visões simultaneamente, principalmente porque as fontes pagadoras não têm a mesma necessidade … algumas têm maior necessidade de internação, outras de cirurgia de joelho, outras de exames de medicina nuclear … todos produtos diferentes que um mesmo hospital vende costurando parcerias diferentes com médicos diferentes, fornecedores diferentes … costura que pode ser mais aderente a uma fonte pagadora do que para outra;
  • Desafiante: uma mesma estrutura física … até organizada de forma praticamente hierárquica … embarca negócios que geram contratos de estruturas completamente diferentes … nem parecem tratar do mesmo produto quando estão sob o foco de fontes pagadoras diferentes;
  • E naturalmente a análise do preço não pode ser feita se baseando em uma estrutura tradicional de apuração de custos como se fosse uma linha de produção de um carro … que existe para “produzir automóveis”;
  • Se fizermos analogia, em hospitais “um robô” da linha de produção da indústria automobilística está no mesmo local produzindo carro, panela de pressão, computador, brinquedo … produtos que são vendidos por “empresas diferentes” (unidades de negócios dentro do hospital) utilizando a mesma “planta física industrial” …

Se não ficou claro … por exemplo:

  • O mesmo médico pode ora fazer cirurgia, ora atender no consultório, ora estar na retaguarda de emergência, ora ser plantonista do pronto socorro … ora estar atendendo paciente do SUS e ser remunerado por salário, ora atendendo pacientes de convênio e ser remunerado por comissionamento, ora atendendo pacientes particulares e comissionando o hospital … o mesmo médico !
  • O equipamento de Raio X pode ser utilizado para pacientes que vêm fazer o exame e vai embora, ou para pacientes internados, ou do pronto socorro … ou seja, pode estar fazendo papel de gerador de receita, ou de unidade de apoio para as unidades que geram receita;
  • O pagamento deste médico … deste Raio X … pode ser contra apresentação, contratualizado, por lote, vinculando o pagamento à medição de um nível de serviço … ou mesclando tudo isso !
  • Isso são só alguns exemplos … mas juntando tudo isso já dá “para quem não é do ramo” perceber que precificar saúde é diferente de fazer uma planilha de custos e definir o preço da mesma forma que o de um carro, da panela de pressão, da latinha de sardinha … é fácil entender que não dá para pegar o custo jogar uma margem e sair vendendo !
  • Não canso de dizer … é fascinante a precificação em saúde … desafiadora porque voce tem que estar atualizado tanto com a evolução dos custos dos insumos, como com a evolução dos modelos de remuneração do mercado … e existe remuneração da fonte pagadora para o serviço … do serviço para o médico e para o fornecedor … da fonte pagadora para o médico e para o fornecedor;
  • Diferente o engenheiro na indústria que é “uma peça na engrenagem de produção”, o médico e o fornecedor são parceiros de negócios do serviço de saúde;
  • O preço que a fonte pagadora paga pode ser a soma dos preços do serviço, do médico e do fornecedor – independentes e integrados – apresentado como preço único de uma “sociedade” que a fonte pagadora não identifica (na maioria das vezes não identifica e não precisa identificar) qual parte é de quem.

E olha que nem estou citando aqui “um complicômetro a mais” que ocorre nas cooperativas de médicos e dentistas, em que este “tipo de ator” é, na essência, ao mesmo tempo “dono da operadora, do serviço de saúde e do médico” … uma particularidade fantástica deste cenário já particular que não ocorre no restante da saúde suplementar !

Muito legal ! … desafiador sim … mas muito legal !!

Então, em relação ao cálculo do custo:

  • As duas formas tradicionais de cálculo de custo que existem em qualquer segmento de mercado (médio e unitário), podem se inviabilizar na prática da gestão do custo por procedimento;
  • Porque despesa pode ser o fator determinante “da cegueira do cálculo”, que pode “supervalorizar ou minimizar” o custo real que a gente quer conhecer de fato: o que está envolvido no atendimento do paciente … o resto é muito importante na análise da rentabilidade da empresa, mas não para a precificação e a análise das unidades de negócios !
  • É comum se utilizar de método menos preciso, mas “mais viável”, que elimina o risco de negociar preços “totalmente no escuro” … não tão preciso, mas com bom nível de segurança !

Porque como comentamos, nem sempre o “fator custo” é tão significativo assim na precificação:

  • Se não é, por que empenhar recurso para cálculos complexos ?
  • Em um projeto de consultoria cheguei a contabilizar quase 28.000 produtos diferentes em um único hospital … nem todos os hospitais têm este volume de produtos … mas voce não encontra um, mesmo que pequeno, com ~100 … ~200 produtos … esta quantidade pequena voce encontra em montadoras de veículos … em hospitais são “de milhares pra cima” !
  • Não vale a pena, nestes casos, “empenhar muito custo para calcular o custo de tudo” … fazer isso é desnecessário, e “não vai mudar a cotação do dólar” !
  • Na maioria dos produtos a análise da cadeia de valores é muito mais determinante para determinar o preço … os fatores comerciais são mais decisivos … e não o custo ou a média dos preços do mercado !

Fatores comerciais são vários:

  • E variam dependendo de cada contexto;
  • A geografia econômica … a fidelização de clientes … as fontes pagadoras … os parceiros comerciais … a distribuição da receita obtida entre os parceiros do negócio … “depende” de cada situação.

E os comerciais são os fatores menos estáticos “na brincadeira”:

  • Enquanto o custo de um procedimento pode se perpetuar por anos, porque eventualmente a técnica pode não mudar para realizar o procedimento ao longo do tempo …
  • … o mercado é implacável … a gente “pisca o olho” e percebe que “abriu um boteco novo vendendo a mesma porção de tilápia que só a gente fazia” … que apareceu um intermediador de determinados insumos que não existia antes configurando um “cartelzinho na região” … que mudou o perfil epidemiológico da carteira de clientes, e naturalmente a desequilibrando a oferta e demanda dos procedimentos A ou B;

Faz com que seja muito diferente vender o produto saúde do que abrir uma loja no shopping e esperar que o cliente passe e compre:

  • Que seja muito diferente de produzir um veículo que se não for vendido na cidade A pode ser vendido na cidade B ! … que pode ser fabricado na Zona Franca de Manaus para ser vendido em Porto Alegre !!
  • Precificar saúde é outra coisa … posso afirmar isso porque uma das minhas atividades de consultoria ocorre também fora da área da saúde: não existe nada igual “comercialmente falando” em qualquer outro segmento de mercado !!!
  • É um produto que o cliente não compra por impulso … precisa comprar … e prefere comprar o mais próximo possível do seu domicílio … ninguém gosta de pegar um avião para “receber agulhada em outra cidade“ … nem hipocondríaco gosta disso !!!!

Este cenário é suportado por várias tabelas de preços:

  • Entender que a tabela é consequência da precificação e não o inverso ainda é um dos maiores desafios para capacitar profissionais na precificação da saúde;
  • Os antigos criaram “um tabu” de que se constrói a precificação a partir das tabelas de preços que existem … e alguns ainda pensam assim, levando hospitais a uma baixíssima rentabilidade;
  • Viva AMB-CBHPM … viva Brasíndice … viva tabela própria … isso não é verdade … na verdade nunca foi !

Quantas vezes presenciei “profetas” discursando: a operadora “X” tem a tabela dela e não abre mão !

  • É difícil convencer o profeta, mesmo que ele já tenha colecionado dezenas de fracassos na prática, que nenhuma delas “idolatra” tabela alguma … nem a tabela criada por ela mesma;
  • Fonte pagadora profissionalizada abomina qualquer tipo de tabela de preços … porque se apegar a qualquer delas engessa a possibilidade de alinhar seus custos … indexa seu orçamento … “engessa” a sinistralidade”;
  • Nenhuma fonte pagadora profissionalizada “abre mão” da possibilidade de contratualizar da forma que a sua sinistralidade seja a menor possível … se tiver que utilizar a tabela A ou B para reduzir a sinistralidade, ela usa “com o maior prazer” … sem se “ligar por cordão umbilical” à sua própria;
  • É claro que se a operadora percebe que não existe profissionalização “do lado de lá”, “empurra” uma tabela “e pronto” … ou se a produção do hospital é insignificante em relação ao total da sua sinistralidade, não vai perder tempo nem impondo sua tabela e postergando a negociação, nem avaliando opções que não vão alterar muito seu resultado, só gerando custo comercial desnecessário !

Até o SUS, que nem é foco desta discussão, abre mão da única tabela que existe na saúde pública … a criada pelo SUS … a SIGTAP … para contratualizar de forma diferente dependendo da sua necessidade … dependendo da oferta e da demanda regional … para alinhar seu restritíssimo orçamento em relação à sua demanda !

As tabelas de preços são meras referências … meras bases de indexação … a lógica dos preços passa longe da estrutura original delas:

  • Por isso lá na primeira figura … que iniciou o texto … vemos tanta diferença de preços de procedimentos tão padronizados entre uma região e outra do Brasil;
  • Multiplicadores aqui … deflatores ali … itens precificados fora da tabela … e “vamos que vamos” … alinhando o que viabiliza a relação comercial;
  • E posso garantir: não são regiões assim tão distantes uma da outra … é surpreendente saber que estão a apenas ~280 km de distância uma da outra … em um país que tem ~6.000 km de comprimento / largura, “é um pulinho”!

Então vamos continuando firmes com a “irritante” resposta “depende”” para a pergunta “quanto se paga por XPTO”:

  • Se até gasolina, que vem da mesma refinaria, distribuído pela mesma distribuidora, é vendida em postos de gasolina da mesma bandeira distantes umas 2 ou 3 quadras de distância por preços diferentes;
  • Então, em “sã consciência” não dá para imaginar que possa existir alguma lógica quando o diretor de uma operadora diz que paga o mesmo preço por uma herniorrafia em qualquer lugar do Brasil … não tem lógica alguma nisso !
  • Se gasolina é um produto “tão igual” e o preço varia 20 … 30 % em “questão de metros” … como pode uma herniorrafia que é realizada por técnica / profissional tão diferente … resultando em “coisa” tão diferente … utilizando insumos tão diferentes … ter o mesmo preço de venda pré-fixado em qualquer lugar ?

O “dono do posto” usa o custo para saber a mesma coisa que o hospital deve saber:

  • Se vale a pena ou não vender gasolina;
  • Se vale a pena vender gasolina com prejuízo para ganhar em outra coisa … no cumprimento da meta da distribuição do álcool, do diesel … na troca de óleo … no restaurante / lanchonete do posto na beira da estrada que todo mundo para “pra dar uma esticadinha nas pernas” … nos outros serviços do posto;
  • Mas o preço … uma vez que custo definiu “a altura do sarrafo e é possível saltar” … o preço é uma questão mercadológica;
  • E se por algum acaso a gente vê que em uma cidade todos os postos vendem a gasolina pelo mesmo preço, o que vem imediatamente na cabeça: só pode ser “cartel” … não é verdade ?

A questão mercadológica da precificação na saúde “tem método” … não é loteria:

  • Se a consulta está inserida em contexto tipo “Santo Graal”;
  • Se não existe oferta de outras equipes que fazem herniorrafia na cidade;
  • Se a implantação do marcapasso é a gasolina vendida com prejuízo para fidelizar o paciente para o resto da vida … para reposicionar o eletrodo, trocar o gerador;
  • … tudo isso tem método !
  • O método “do dono do posto” que não é fazer a média do preço dos outros postos e “chapar na bomba” … pergunte para ele … não é mesmo !!

E por isso nós gestores temos que conhecer e entender a estrutura … os conceitos da precificação …

  • Porque a definição do preço sempre estará majoritariamente vinculada aos fatores que viabilizam o negócio tanto para o serviço de saúde como para a fonte pagadora;
  • Nem serviço de saúde, nem fonte pagadora … mesmo que sejam entidades filantrópicas … conseguem sobreviver sem lucro … sem lucro não existe amanhã para qualquer tipo de instituição !
  • Seu objetivo social pode até não ser obter lucro … mas precisa do lucro para sobreviver … porque sem o lucro seu objetivo social nunca pode ser realmente sustentável !

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