(*) todos os gráficos e ilustrações são partes integrantes do Estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil e do material didático dos cursos da Jornada da Gestão em Saúde e da Escepti
O mais fascinante da gestão na saúde é a necessidade de analisarmos de “forma matricial”:
- Quando empacotados por uma mesma embalagem, se não abrir o embrulho não sabemos que se tratar de presentes completamente diferentes;
- Na área da saúde “coisas” que só têm em comum o médico, assessorado por uma equipe de profissionais assistenciais multidisciplinares, cuidando do paciente criam “mundos” diferentes … sistemas de financiamento e modelos de remuneração que exploram comercialmente esta atividade assistencial;
- Empresas … instituições … que formam grupos que não têm nada a ver umas com as outras;
- Começam definindo 3 sistemas de financiamento completamente diferentes: o SUS, a Saúde Suplementar Regulada pela ANS e a Saúde Suplementar Não Regulada.
Como são sistemas de financiamento muito diferentes … “na cor, gosto e cheiro” … têm índices de inflação completamente diferentes … não têm nada a ver um com os outros.
E o mais fascinante ainda é que, mesmo dentro de um mesmo sistema de financiamento, a forma de medir o índice que se reflete para a população (a consumidora final do produto) é completamente diferente da forma de medir o índice para quem produz (o hospital, por exemplo) … ou para quem intermedia o pagamento do financiador (o beneficiário) para quem produz: a operadora de planos de saúde !
E outro post (25/3) discorremos sobre a medição da inflação hospitalar … a instituição que produz:
- E o cálculo se baseou na variação de preços de aquisição dos insumos;
- Chegamos ali a uma inflação em 2021 que se aproximou de 35 %;
- E estressamos a discussão de que é um índice que demonstra tendência, e que não pode ser aplicado para reajustar contratos entre hospitais e operadoras, por ser um índice geral, cujas variações regionais e dependentes da carteira de beneficiários que a operadora leva para cada hospital serem muito diferentes.
Este índice jamais pode ser utilizado para medir a tendência de inflação para a população que adquire planos de saúde … ou as empresas que contratam planos de saúde para seus funcionários. E o foco aqui é estressar a discussão de que não existe … não pode existir … um único índice de inflação para reajustar o preço de planos de saúde no Brasil.
A figura ilustra uma manchete no Portal do G1 que demonstra uma evolução dos reajustes de planos individuais:
- A teimosia da ANS em regular desta forma os reajustes de planos individuais tem inviabilizado a atuação de empresas no setor, além de estar reduzindo a qualidade dos planos de saúde ano após ano;
- A mídia, como demonstra a manchete, não tem especialistas em saúde suplementar regulada, e acaba caindo na “arapuca mais elementar para presas fáceis”: utilizar números verdadeiros, mas que não se aplicam para analisar o fato específico que está em pauta;
- O que a ANS divulga e/ou o que pessoas que inadvertidamente compilam de dados do site da ANS para discutir reajustes de planos de saúde invariavelmente é uma “matemágica” que Einstein não conseguiria explicar mesmo que vivesse 1.000 anos … na verdade: nem Freud explicaria, se é que me entende !
Pela minha especialização em gestão de contratos, costumo conduzir alguns projetos de consultoria também fora da área da saúde:
- Um dos projetos que tive a oportunidade de conduzir nesta especialidade foi no Operador Nacional do Sistema Elétrico (RJ e DF) … conduzir com muita honra, diga-se de passagem !
- E como minha formação inicial foi na área de engenharia elétrica (antes de me especializar em gestão hospitalar e gestão da saúde) posso fazer a comparação com a consciência muito tranquila … com a certeza de não falar muita bobagem ao comparar e diferenciar completamente o segmento de energia com o da saúde … e a atuação das agências reguladoras de dois segmentos tão distintos !
O mapa do Brasil acima ilustra a distribuição das nossas usinas hidroelétricas – um dos nossos “orgulhos nacionais”:
- É um mercado regulado pela ANEEL (o conteúdo foi extraído do site da ANEEL);
- Vamos lembrar que diferente da saúde em que a participação de empresas privadas é livre segundo nossa Constituição Federal, no caso de energia não é;
- As empresas são concessionárias – é o próprio governo prestando serviço através de empresas privadas, portanto a ANEEL “manda prender e manda soltar” … tem total autoridade para regular completamente o segmento, mas não se exime da responsabilidade sobre a prestação do serviço à população;
- Os reajustes de preços não vão viabilizar somente as empresas concessionárias … vão viabilizar o próprio governo na sua obrigação de prestar o serviço !
Bem … os sistemas de geração e distribuição de energia são interligados:
- A energia produzida em um local não é necessariamente consumida neste local de origem … voce pode estar consumindo energia para ler este texto que foi gerada a milhares de quilômetros de distância de onde está localizado;
- E o produto é único: energia elétrica é energia elétrica em qualquer lugar, seja para carregar o celular, tomar banho, assistir TV, ligar o ventilador …
- Então, se voce estabelece critérios de reajuste de preços de energia em âmbito nacional, por conta desta interligação … por conta de ser um único produto … por conta do governo ser o único fornecedor … funciona !
Funciona principalmente porque os custos são distribuídos em todo o sistema, e porque a arrecadação (o dinheiro pago por nós nas contas) também acaba sendo distribuído, afinal boa parte são tributos (impostos, taxas e contribuições), e são significativos em relação ao total pago na conta, e acabam engordando os próprios cofres públicos !!
Mas com saúde onde não tem nada a ver o custo de um procedimento realizado em um local distante do outro, e “embarca” algo em torno de 30.000 produtos diferentes, não funciona:
- É uma prestação de serviço personalíssima …
- … realizada com matéria-prima completamente diferente (o paciente) …
- … por profissionais de formação, experiência e competência completamente diferentes (médico, enfermagem …) regionalmente …
- … em mercados completamente diferentes (geografia econômica de cada região) – embarcando inflações de insumos regionais completamente diferentes;
- … envolvendo milhões (não é exagero: são milhões … basta ver o CNES) de fornecedores na cadeia de valores da prestação de serviços.
Na saúde, estabelecer um índice nacional não funciona !! … não tem a menor chance de funcionar !!!
- Estabelecendo um índice médio de inflação … na média … a ANS erra no atacado … é algo absolutamente inexplicável;
- Um índice nacional, seja lá qual for … não se adequa a realidade de 100 % dos envolvidos …
- … cada operadora de planos de saúde … cada empresa contratante de planos de saúde para seus funcionários … e cada beneficiário de plano individual;
- É bom que se diga que o que a ANS faz reajustando planos individuais também afeta empresas contratantes de planos sim: por exemplo – tanto que uma parcela já significativa delas (faz tempo) abandonou a concessão de planos de saúde coletivos para conceder vale saúde aos funcionários, porque “cansou” da regulação dos planos de saúde !
Vamos entender bem isso …
A tabela demonstra a evolução percentual (a variação percentual) dos gastos assistenciais das operadoras entre 2019 e 2020, e entre 2020 e 2021:
- As operadoras estão agrupadas segundo a ANS, por modalidades (tipos);
- Os dados foram coletados no próprio site da ANS;
- Perceba que a variação dos gastos assistenciais de cada modalidade variou da “água para o vinho” nos anos de pandemia;
- Na verdade sempre variaram da água para o vinho desde que se tem informações das operadoras à disposição … é só tabular com os dados do próprio site da ANS;
- As despesas assistenciais são a essência dos custos das operadoras para pagamento das despesas que os beneficiários geram nos serviços de saúde ao utilizarem o plano de saúde – a inflação real da saude suplementar regulada, sob o ponto de vista da operadora !
- Esta variação é a que serve de base para definir o que chamamos de “sinistralidade” que é a base para se definir o reajuste de preços dos planos de saúde: quando a utilização dos serviços por parte dos beneficiários aumenta, aumentou a sinistralidade, e o preço deve ser reajustado para cima … se diminui, o preço deve ser reajustado para baixo !!
Somente olhando para esta tabela já é possível entender que não é possível que exista um único índice de inflação que possa ser aplicado para todas elas:
- Qualquer índice que represente algo que varie entre -4,4 % e -10,9 % (o dobro), ou entre 11,9 % e 36,7 % (mais que o triplo) é espuma, fumaça … nada que possa ser considerado sólido;
- E nem, como dito lá em cima, tem nada a ver com a inflação na origem … nos serviços de saúde … duvida ? …
- … pergunte para qualquer administrador hospitalar se em 2020 os custos reduziram …
- … ou se em 2021 aumentaram na casa dos 36,7 % em média …
- … me aponte um único administrador que confirme isso e “Deus poupará todos em Sodoma e Gomorra” !
Nesta variação que considera somente os gastos assistenciais, existe mistura de planos individuais com os coletivos:
- A ANS acha correto definir o reajuste dos individuais, mas não interfere no reajuste dos planos coletivos;
- Outra coisa bem “engraçada”: a maioria absoluta dos planos comercializados (~80 %) são coletivos … ou seja, a ANS define o reajuste dos planos individuais, que são minoria, e deixa para “livre negociação” os preços da maioria;
- É como se a ANEEL, por exemplo, dissesse que vai regular os preços da tarifa de energia das empresas, que são minoria, e deixasse para “livre negociação” o reajuste da tarifa de energia elétrica das residências … é engraçado ou não é ?
Na verdade, se tem alguma instituição “na face da Terra” que não pode alegar que as operadoras e seus planos de saúde não têm nada a ver umas com as outras … esta instituição deveria ser a ANS:
- Os dados que constroem as pizzas são colhidos no próprio site da ANS;
- Demonstram como se distribuem os gastos das operadoras;
- Os pedaços cor de “frango com cheddar” representam os gastos assistenciais, proporcionalmente em relação aos demais gastos (comerciais, administrativos e outros);
- Dá para entender que não tem como a variação inflacionária de um tipo “chegar perto” dos outros;
- Temos operadoras que necessitam “brigar pelo mercado” e tem uma maior parcela de gastos comerciais;
- Temos operadoras mais e menos eficientes que gastam proporcionalmente mais ou menos administrativamente.
Nem parecem ser do mesmo país … para quem não é do ramo duvida que sejam dados coletados de empresas que atuam no mesmo segmento de mercado no mesmo planeta, tamanhas são as diferenças !
Quando analisamos ainda mais detalhadamente a evolução desta distribuição tudo acaba ficando muito mais evidente:
- O cenário antes, durante e quase depois da pandemia afetou de forma absolutamente diferente cada um dos tipos;
- É só perceber que quando representamos os tipos de gastos por colunas ao longo dos 3 anos, vemos que as colunas não guardam proporcionalidade;
- Uma autogestão, como a Cassi, que cuida da saúde dos funcionários de uma única empresa (Banco do Brasil), que se situam em classes econômica e social específicas, foi afetada completamente diferente de uma seguradora, como o Bradesco, que presta serviços de assistência médica para pessoas das mais variadas classes econômicas e sociais …
- … foi diferente para a autogestão dos funcionários do município de Xiririca da Serra, dos que compram o “plano diamante” da medicina de grupo de marca …
Até mesmo quando isolamos as operadoras que comercializam planos exclusivamente odontológicos, que têm matriz de custos muito … mas muito … mas muito mais simples do que a dos planos de assistência médica, tudo que discorremos acima se repete:
- Os gráficos mostram as mesmas características;
- E olha que neste caso são apenas 2 tipos;
E considere que assistência odontológica também afeta o que está descrito lá em cima quando tratamos das operadoras de assistência médica, porque boa parte delas também comercializa planos com odontologia … outra “coisa engraçada” da ANS:
- Permite que operadoras de assistência médica comercializem planos odontológicos;
- Mas não permite que operadoras de planos odontológicos comercializem planos de assistência médica
- Coisa que prejudica a sustentabilidade tanto da cooperativas médicas, como de dentistas !
- E … pior … em qualquer outro segmento a venda de “produtos casados” (assistência médica e assistência odontológica) é proibida … na regulação da ANS não é !!
Se isso já foi suficiente para entendermos que um índice que mede tendência de inflação não pode … não deve jamais … ser utilizado para reajuste de preços, ainda falta um “pequeno detalhe”:
- Todos estes números e gráficos foram construídos com dados gerais, de todas as operadoras;
- Quem, como eu, trabalha profissionalmente com dados segmentados regionalmente sabe o quanto variam pelo Brasil;
- E não é uma questão de separar capitais de outros municípios … ou segregar regiões metropolitanas acima de X mil beneficiários das demais;
- Não existe uma única fórmula matemágica que possa justificar “colocar toda esta farinha no mesmo saco” !
A Geografia Econômica da Saúde é implacável: se algum instituto, seja lá qual for, publicar um índice de inflação da área da saúde para todo o Brasil, ou não é do ramo da saúde, ou não é do ramo da economia, ou não tem a menor ideia do que é o Brasil … pensa que está em Israel, na Suíça ou em algum outro pequeno país em território, população ou diversidade socioeconômica !
Enfim … são raríssimos os índices de variação de inflação que podem ser aplicados em reajustes de contratos:
- No caso da energia elétrica, que é um sistema único, ele funciona … com vieses, mas funciona;
- Seguros por exemplo … o seguro do seu carro, da sua casa … é individual e não é reajustado por um índice nacional – voce sabe disso quando renova o seu seguro não é verdade ? … o que vale é a velha e eficiente lei da oferta e da procura !
- Nem em contratos de aluguel de imóveis aplicar o índice de variação da construção civil tem a ver … a inflação da construção civil regionalmente não tem nada a ver … por isso locador e locatário invariavelmente negociam o reajuste segundo as condições particulares do mercado onde o imóvel se situa, independente do contrato “rezar a aplicação de algum índice” … isso é tão claro, não é verdade ?
A ANS divulgando um índice nacional de reajuste de planos individuais … editando resolução normativa “rezando” que contratos não reajustados entre operadoras e serviços de saúde são automaticamente reajustados por um índica até que a negociação ocorra … é inacreditável … injustificável … !!!
O que motiva a ANS a agir desta forma é impossível de entender … se é pressão de grupos de interesse, se é política … seja lá o que for é inexplicável: o resultado é esta matemágica pura !!!!
Na verdade a ANS caiu em uma armadilha de regulação que não consegue se desvencilhar … não é problema dos funcionários da ANS, de falta de competência, de falta de treinamento … longe disso … mas muito longe disso … que fique muito claro.
O que é necessário é um reposicionamento da agência … deixando de tentar se equiparar com as outras agências reguladoras, porque igual não pode ser, e deixando de intervir desta forma em um mercado no qual a Constituição do Brasil define como sendo “livre para a iniciativa privada” !
Enio Jorge Salu tem especializações em Administração Hospitalar, Epidemiologia Hospitalar e Economia e Custos em Saúde pela FGV – Fundação Getúlio Vargas. É professor em Turmas de Pós-graduação na Faculdade Albert Einstein, Fundação Getúlio Vargas, FIA/USP, FUNDACE-FUNPEC/USP, Centro Universitário São Camilo, SENAC, CEEN/PUC-GO e Impacta. Coordenador Adjunto do Curso de Pós-graduação em Administração Hospitalar da Fundação Unime. Também é CEO da Escepti Consultoria e Treinamento e já foi gerente de mais de 200 projetos em operadoras de planos de saúde, hospitais, clínicas, centros de diagnósticos, secretarias de saúde e empresas fornecedoras de produtos e serviços para a área da saúde e outros segmentos de mercado.