A pandemia e o pandemônio: a culpa não é do isolamento social
O primeiro caso da covid-19 no Brasil foi notificado no final do mês de fevereiro de 2020, quando um senhor de 61 anos deu entrada no Hospital Israelita Albert Einstein, na cidade de São Paulo, no dia 25.
Segundo o Ministério da Saúde, o homem tinha um histórico de viagem para Itália, justamente na região da Lombardia, uma das mais afetadas. Naquele momento, iniciou-se no Brasil a história da pandemia pela covid-19, a qual vivenciamos até hoje.
O vírus, então chamado de “novo coronavírus”, desde que chegou no Brasil, tem movimentado instituições, pessoas e promovido ações por estados e em todas as cidades.
Os governos, assim que tiveram ciência, criaram e publicaram decretos e portarias para enfrentar a “nova peste”. Organizados, e por meio da lei, aplicaram o remédio recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS): o isolamento social! Sob a lógica de evitar uma crise sanitária de ordem catastrófica, governantes editaram leis privando, parcialmente, o indivíduo de liberdade, em nome de um bem maior.
Pela saúde pública, a sociedade aderiu ao isolamento e a ciência referendou. Contra um vírus imune aos medicamentos atuais e sem vacina que possa combatê-lo, a melhor forma de garantir o direito à vida é justamente se “refugiar e se esconder dentro de casa”.
Depois de mais de quatro meses do registro do primeiro caso, o Brasil já ultrapassa a marca de mais de 50 mil mortes. Então, o que estaria dando errado? As leis foram publicadas e a ciência falou, reforçou e explicou a importância de ficar em casa.
Afinal de contas, é preciso achatar a curva! Hoje os brasileiros não são somente experts em futebol. São também especialistas em epidemiologia, números de casos confirmados, números de óbitos e taxa de transmissibilidade. Essas são expressões que já fazem parte do vocabulário de muitos, os quais até já conseguem explicar cada uma dessas variáveis.
Alguns cientistas avaliam que esse triste número de mortes em nosso país se dá pelo fracasso nas taxas de isolamento social, todavia, há muitas outras questões e dimensões a serem avaliadas. O vírus está desnudando várias facetas do Brasil. Falta de liderança, falta de empatia, intolerância e os abismos sociais são exemplos dos problemas que foram despidos, aos olhos daqueles que estão livres da outra peste: a miopia política.
Alguns líderes pelo Brasil mimetizaram o “novo coronavírus” como uma gripezinha, minimizaram os impactos e subestimaram a doença. Em poucos lugares do mundo, os seus líderes utilizaram a pandemia para fazer palco para disputa política, como se estivessem em plena campanha eleitoral.
No Brasil, “essa política” que não politiza, mas que há muito tempo mata, agudizou-se e criou uma dicotomia polarizada entre saúde e economia.
Quem é bom está do lado da saúde e da vida, quem é mau está do lado da economia e do lucro. Todavia, polarizar entre saúde e economia não faz parte do objetivo para vencer essa guerra, pois o inimigo é forte, cruel e invisível.
Era necessário que logo no início da batalha houvesse líderes que atuassem em conjunto para vencer e proteger seu povo – isso foi visto no Brasil? Não! O que se vê no país são guerras de narrativas e intrigas políticas.
O país conseguiu se superar e criar várias crises, além da que já estava instalada com a do “novo coronavírus”. A população, no meio de todas essas crises, acaba por escolher um lado, muitas vezes na crença que há lado certo.
A intolerância, que já estava anteriormente ressaltada no país, ganhou força, mas não foi contra a “nova peste” da covid-19 e, sim, contra grupos que têm pensamentos diferentes. Criou-se, no Brasil, o grupo da cloroquina e o grupo do isolamento social. Lockdown tornou-se a palavra da moda; e ivermectina também.
Pior, há ciência e experts nos dois lados. Então, como falar de informação qualificada quando a intolerância mata a razão e, muitas vezes, utiliza a grife da ciência para respaldar suas narrativas?
No meio desse turbilhão de problemas, percebe-se também a falta de empatia, de se colocar no lugar do outro e compreender que um dos remédios, pouco falado pela ciência, é a solidariedade. O país precisa agir como nação para vencer as crises criadas que estão além da área da saúde.
O remédio da solidariedade poderá ajudar a enfrentar essa e tantas outras adversidades que o Brasil não precisava ter gerado. Talvez o país tenha optado por aprender pela dor e não pelo amor – provavelmente porque a ciência e a política se expressam muito pouco por esse caminho.
O auxílio emergencial de R$ 600,00 poderia ter sido uma política compensatória que teria contribuído para a eficácia do isolamento social. Essa medida seria uma ação humanitária para compensar o desemprego e a falta de renda que assola o país, contudo, pode ter sido desastrosa.
Sem estratégia, sem logística e planejamento conjunto e sinérgico com as medidas sanitárias, o pagamento do auxílio provocou enormes filas, aglomerações e humilhação à população mais pobre em todo o Brasil.
Fez justamente o que não deveria ter feito. O auxílio emergencial foi na contramão das medidas sanitárias, tendo em vista que, atualmente, a população de baixa renda é a mais vulnerável e neste momento é a que mais precisa dos leitos de UTI, em virtude da covid-19.
Além disso, as barreiras impostas para apoiar as pequenas empresas, aquelas que trabalham a família e/ou até dois ou três empregados, dificultaram o acesso aos recursos prometidos.
Até hoje foram poucas as pequenas empresas que conseguiram êxito. Esse é outro aspecto negativo que contribui para ampliar a pobreza e a miséria justamente neste período de pandemia, isso pode ter sido mais um ponto contra as medidas sanitárias adotadas no Brasil.
Logo, como exigir que milhares de pessoas fiquem em casa, quando não há proteção social que possibilite isso? E as que foram postas, foram mal planejadas e em algum nível podem ter atuado contra as medidas sanitárias desenhadas pelo próprio país.
É muito fácil dizer que o vírus se expandiu porque não houve isolamento social, todavia parece injusto, sobretudo quando o abismo social impõe outra dinâmica – pessoas precisam sobreviver e 100 dias sem renda e com dívidas não é algo fácil de superar ficando em casa.
O isolamento social diante de tantas crises e dificuldades que o país atravessa tem, sim, alcançado êxito, pois não é coerente exigir do povo além do que ele pode dar. Não é razoável definir para o Brasil níveis de isolamento social iguais aos de países que têm índices de desenvolvimento humano maiores e cuja a rede proteção social foi efetivamente planejada e criada.
Além de injusta, essa situação tende a imputar, à sociedade e a gestores públicos sérios e comprometidos, uma responsabilidade que está além da que podem assumir. O reducionismo nesse campo é perigoso e não esclarece a população.
Ao contrário, reforça narrativas que vão contra a ciência e o próprio isolamento social, além de contribuir para mitigar a responsabilidade de quem realmente deve ser cobrado.
No Brasil, a pandemia segue seu curso, não diante da dinâmica de sua natureza, mas do pandemônio que o país criou em torno dela.
**Artigo escrito por Ricardo Valentim, Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Coordenador do Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde (LAIS/UFRN)