Ligia Bahia, professora adjunta na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fala também sobre integração público-privada, SUS, pluralidade de opiniões e o que esperar do futuro da saúde
A concepção mais tradicional de Saúde Pública envolve a aplicação de conhecimentos variados, principalmente econômicos e sociais, com o objetivo de organizar sistemas e serviços de saúde. No Brasil, quando esse tema é trazido à tona, é impossível não relacioná-lo à Lígia Bahia, professora adjunta na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma das maiores especialistas na área.
Mestre e doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz, Lígia também tem experiência em Políticas de Saúde e Planejamento, principalmente em temas como sistemas de proteção social e saúde; relações e financiamento público e privado no sistema de saúde brasileiro; mercado de planos e seguros de saúde, assim como regulamentação dos mesmos.
Para a Healthcare Management, Ligia Bahia fala sobre seus anseios que a motivaram a seguir carreira na saúde pública, a importância da pluralidade de pensamento, a integração entre o setor público e privado e muito mais.
Dedicação para a saúde pública
“Estudei em escola pública a vida toda e, desde cedo, percebi que as diferenças sociais no Brasil eram cruéis. Eu queria, como toda criança e depois como adolescente, mudar o mundo para melhor, então a minha principal inspiração foi ter nascido em um país muito desigual.
Mas a motivação para seguir carreira na saúde pública envolveu o período em que cursei medicina. Entrei na faculdade em 1975, então o regime civil militar começava a mostrar sinais de exaustão e a organização da sociedade civil aparecia com mais vigor na defesa da democracia.
Assim como eu, muitos colegas de classe viram na saúde pública uma continuidade da conjugação entre conhecimento e ação. Era o caminho natural a se seguir.”
Pluralidade de pensamento
“Acredito que o maior desafio que enfrentei, e ainda enfrento, é como usar bem o conhecimento de forma pública, já que é relacionado ao completo respeito à pluralidade do pensamento.
Uma aula, por exemplo, não é doutrinação, e sim uma apresentação do estado das artes, das pesquisas constantes e das reflexões existentes sobre cada tema.
Os desafios trazem aprendizados e acredito que a maior lição que assimilei foi trazer para perto quem discorda da sua opinião e estabelecer como regra a convivência entre pessoas e ideias que estimulem o debate.
O mérito não é meu, mas de quem se aproximou de mim e tem sido capaz de manter um diálogo franco independentemente de nossas opiniões.”
Integração público-privada, qual o equilíbrio?
“Qualquer sistema de saúde tem componentes públicos e privados e nós temos que estabelecer relações entre esses componentes que atendam bem as necessidades gerais da área. Não se trata de ser contra ou a favor desses setores e sim de pensar: qual é a proporção adequada de cada um e como devem ser combinados?
O financiamento no Brasil é predominantemente privado e, portanto, incompatível com um sistema equitativo. E qual seria a melhor alternativa para um país como o Brasil? Um sistema público e universal para nossos mais de 200 milhões de habitantes.
Vale lembrar que público não é sinônimo de estatal e sim de “bem comum”, então seria um sistema para todos com foco na melhoria da saúde oferecida.”
SUS e a atenção às diferenças
“O Sistema Único de Saúde (SUS) é um ótimo sistema, mas precisa de mais recursos. Para termos um serviço público bem-sucedido é preciso ter objetivos bem definidos e orçamentos compatíveis com as finalidades expressas, como políticas e metas.
Tem sido comum prometer mundos e fundos em épocas de crise ou eleições, mas depois todos se lamentam por não ter recursos financeiros. É necessário ajustar as intenções com a capacidade efetiva de realizar essas propostas.
Se teve um mérito que a pandemia da Covid-19 trouxe para o SUS foi que a população passou a defender o Sistema e reconhecer seu valor e relevância. Simbolicamente, o SUS até sai fortalecido, mas objetivamente não houve resolução de seus déficits assistenciais. O que fica como legado é a visibilidade das lacunas do Sistema e será difícil contornar o assunto para os candidatos à presidência em 2022.
Quando falamos de SUS, não podemos evitar falar sobre a equidade das políticas de saúde do país. Esse tema é crucial e entrou para a agenda pública nos anos 1990, no embalo de diversos movimentos indenitários relacionados ao feminismo, capacitismo, orientação sexual, racismo, entre outros.
Para a saúde, essas pautas são muito relevantes e trazem consigo o desafio de buscar respeitar diversidades no contexto de políticas sociais igualitárias. A resolução a curto prazo para resolver a questão da equidade do SUS envolve cotas e políticas específicas.
Já no longo prazo, espera-se que esses grupos assumam postos de poder e que as diferenças sejam apenas manifestações de pluralidade e não de desigualdade. O foco é reconhecer as necessidades financeiras e sociais de grupos específicos e atuar para reduzir o impacto das diferenças.”
O futuro é a publicização
“A tendência para o mundo nos próximos anos é a publicização dos sistemas de saúde e essa é uma perspectiva puxada pelos governos europeus e pela eleição dos democratas nos Estados Unidos.
No Brasil, a dificuldade de se obter um debate aberto sobre os interesses econômicos do setor são indícios de que a polarização público-privada continuará existindo.
Os argumentos expostos para a defesa da privatização são retóricos e mudam a todo momento, ora apelando para a eficiência, ora para a não corrupção, que são méritos não comprovados pelas Organizações Sociais (OS).
É necessário esperar que o Brasil siga o caminho de outros países e comece a discutir seriamente essa publicização.”