Um ano e meio se passou desde a promulgação do piso da enfermagem, mas morosidade persiste e direito não chega a quem mais precisa
O ano de 2024 começou com um gosto amargo para a enfermagem. Há um ano e meio, o piso salarial da categoria era aprovado praticamente por unanimidade pelo Congresso Nacional e sancionado sem objeções pela Presidência da República. Não obstante, mesmo após ampla pactuação e a devida comprovação de viabilidade econômica, os valores ainda não chegaram ao contracheque da maioria dos trabalhadores brasileiros, que seguem reféns de um sistema de saúde corrompido que pouco respeita esses aspectos humanos dos processos de trabalho em saúde. O que parecia ser uma valorização tardia, se tornou uma angustiante espera, marcada com a depreciação do trabalho e pelo descrédito das instituições.
A reivindicação por um salário digno e compatível com a complexidade da profissão não é de hoje. São mais de 30 anos de luta, persistência e negociações objetivando um desdobramento prático em benefício da coletividade. Legitimamente, o projeto de lei apresentado pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES) acatou as necessidades da categoria e obteve amplo apoio político, mesmo em um momento marcado pela extrema polarização política. Com a pressão da opinião pública e forte apoio popular, a proposta cumpriu todos os ritos e alcançou status constitucional. Mesmo com a troca de governo, o processo teve desfecho favorável e fez renascer a esperança pela valorização da enfermagem.
Após vencer o debate político em todas as instâncias possíveis, a enfermagem foi injustamente levada ao Supremo Tribunal Federal (STF), justamente por aqueles que lhe devem valorização. Os empregadores, liderados pela Confederação Nacional da Saúde (CNSaúde), ingressaram com uma ação de inconstitucionalidade contra o piso e obtiveram uma liminar para travar o processo. Neste período, se utilizaram de seu imenso poder econômico para influenciar a mídia corporativa com teses questionáveis, dizendo que o piso causaria demissões, fechamento de leitos e o colapso do sistema de saúde. Ou seja, ponderações que já haviam sido elucidadas durante o processo legislativo.
Submetida a essas questões, a Suprema Corte desconsiderou o trabalho de deputados, senadores e do presidente da República, ao desvirtuar parcialmente a legislação concebida mediante profundo debate político. Além de reter o processo por um ano, o STF decidiu vincular o piso à jornada de 44 horas semanais, quebrar a isonomia entre os setores público e privado e subverter o conceito de piso salarial, definindo-o como remuneração global. Para tanto, desconsiderou as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da Organização Mundial do Trabalho (OIT), que apregoam jornada de trabalho de 30 horas semanais para a enfermagem.
Diante desta interpretação, convém se voltar à realidade dos fatos. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostram que o lucro líquido per capita de planos de saúde mais que dobrou nos últimos quatro anos analisados, saltando de R$ 75,70, em 2014, para R$ 185,80, em 2018. A receita das operadoras cresceu de R$ 229,9 bilhões, em 2020, para 239,9 bi, em 2021. Entre os maiores bilionários do país, estão os empresários da saúde. Ou seja, os empregadores podem pagar o piso da enfermagem. Entretanto, recorrendo ao STF, os contratantes do setor privado dão mostras de falta de humanidade e consideração em relação a sua maior força de trabalho e sugerem que não levam em conta a qualidade dos serviços prestados à população.
O piso salarial de R$ 4.750 para enfermeiras e enfermeiros, R$ 3.325 para técnicas e técnicos e R$ 2.375, para auxiliares e parteiras, não é um salário com o qual sonhamos, uma vez que já é fruto de negociação e considera as assimetrias regionais do país. Trata-se apenas de um mínimo constitucional, que objetiva extinguir os salários miseráveis que atingem a categoria. Negociar em cima de números modestos e procurar “esticá-los”, submetendo sua validade proporcional a uma jornada de 44 horas – e não de 30 horas, que é a recomendada pelas organizações internacionais ou ainda as 40 horas, trazidas pelo ministro relator – só pode ser explicado pela insensibilidade.
A pandemia da covid-19 expôs a realidade insustentável enfrentada pela absoluta maioria dos profissionais de saúde, especialmente na linha de frente. As equipes trabalham com contingente desproporcional, devido às baixas decorrentes do adoecimento mental e das mortes laborais. Enfim, superada a maior crise de saúde pública da história recente, era o momento de buscar a valorização com o respaldo constitucional do Congresso Nacional. Evidentemente, é com profunda consternação que assistimos aos impensáveis retrocessos em curso.
A espera da enfermagem por sua valorização precisa chegar ao fim. Nós, profissionais de enfermagem, juntamente com os representantes da categoria, temos conosco a maioria da opinião pública e continuaremos a recorrer às instâncias representativas da política, para fazer valer o que é justo. O piso nacional da enfermagem é urgente e não pode mais esperar para se converter em realidade, principalmente para quem mais precisa.
*Danielle Cruz é enfermeira, pós-graduada em gestão em saúde pública, especialista em Enfermagem Oncológica e mestre em economia (UnB).