Por Víctor Macul* e Olívio Souza Neto**, fundadores da Ana Health
Nos últimos anos, a área da saúde tem passado por transformações tecnológicas significativas, levando a debates acalorados sobre a “uberização” dos profissionais de saúde. Algumas empresas apostam nesse caminho como sendo o futuro, já outras pessoas trazem preocupações sobre esse formato de trabalho.
A “uberização” dos profissionais da saúde, caracterizada pela prestação de serviços por meio de plataformas digitais, tem suscitado preocupações sobre a qualidade da experiência, a falta de continuidade do cuidado e a despersonalização dos pacientes. No entanto, o sistema de saúde já opera em um modelo de uberização do profissional de saúde há muito tempo, sob a denominação de rede credenciada. As plataformas digitais apenas tornaram a uberização do trabalho mais evidente. No modelo de pagamento por atendimento (fee-for-service), aliado a metas de produtividade, há o risco de priorizar a quantidade em detrimento da qualidade, o que pode comprometer a segurança e a eficácia de um tratamento.
Neste modelo não há espaço, nem tempo, para a criação de vínculos duradouros entre profissionais de saúde e pacientes. Os atendimentos são pontuais e nada personalizados. Muitas vezes as pessoas não se sentem ouvidas, saindo das consultas com dúvidas e sem a confiança necessária no profissional. A impossibilidade de realizar um acompanhamento com o mesmo profissional de saúde incentiva a busca por uma segunda opinião, gerando consultas repetidas e, por vezes, diagnósticos e condutas divergentes, o que complica ainda mais a eficácia do tratamento.
Diante desse cenário, é compreensível que a tecnologia seja vista com desconfiança e receio na área da saúde. No entanto, é importante reconhecer que a inovação, quando utilizada de forma ética, pode ser uma aliada valiosa na busca pela humanização dos atendimentos. Em vez de substituir a interação, os recursos tecnológicos podem ser integrados aos processos de cuidado para servirem de apoio aos profissionais de saúde.
Um exemplo promissor é o uso de plataformas que combinam a expertise humana com a inteligência artificial para oferecer um cuidado personalizado e contínuo. Por meio de uma simples mensagem no WhatsApp, as pessoas podem acessar informações sobre sua saúde, esclarecer dúvidas e receber orientações básicas, ampliando o acesso ao bem-estar e promovendo, de quebra, a autonomia. Ao mesmo tempo, os profissionais de saúde têm a oportunidade de interagir com assistentes virtuais, revisar as interações, identificar necessidades que não foram acompanhadas e intervir quando necessário. Tudo para garantir a efetividade do atendimento.
Outra tendência da tecnologia na área da saúde é a utilização de modelos de inteligência artificial generativa para simular interações humanas e aprimorar as habilidades de comunicação dos profissionais de saúde. Esses modelos podem ser treinados com base em dados reais de consultas para gerar diálogos reais, permitindo que os profissionais de saúde pratiquem e aprimorem suas interações de forma segura.
Ao facilitar o acesso a uma equipe de saúde de referência, o ambiente digital proporciona um aumento dos pontos de contato entre as pessoas e profissionais de saúde, que passam a fazer um acompanhamento mais próximo, no dia a dia. Mais conversas geram mais dados, que, com inteligência, são utilizados para personalizar o cuidado de forma eficiente e segura. No modelo human-in-the-loop, os profissionais de saúde atuam como curadores do conteúdo produzido pela IA. A presença constante de profissionais de saúde no ciclo de feedback garante que as recomendações sejam supervisionadas e refinadas por humanos, bem treinados e imersos na cultura da organização. Esse modelo híbrido não apenas melhora a precisão das intervenções, mas também aborda questões éticas, assegurando que o cuidado ao paciente seja mais humanizado e melhor preparado para lidar com vieses sociais, culturais, de raça e de gênero que podem acontecer.
É importante ressaltar que a tecnologia, por si só, não é capaz de garantir a humanização dos atendimentos de saúde. Ela deve ser combinada com práticas que valorizem a empatia, a escuta atenta e o acolhimento, para criar uma experiência verdadeiramente centrada no paciente. Também é fundamental estabelecer diretrizes e regulamentações claras para o seu uso na área da saúde, garantindo a privacidade, a segurança das informações e a proteção da dignidade dos pacientes.
A uberização não é um fenômeno inevitável, mas uma escolha de design de sistema. Devemos escolher sabiamente como iremos utilizar a tecnologia, priorizando o bem-estar das pessoas e a satisfação dos profissionais de saúde. Em última análise, a qualidade da nossa saúde depende da qualidade das nossas relações humanas dentro do sistema.
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*Víctor Cussiol Macul é engenheiro, COO e fundador da Ana Health. Lidera o desenvolvimento de produtos e a operação da empresa. É professor de Pós Graduação e Educação Executiva do Insper e pesquisador na área de design centrado no usuário e gestão da experiência do consumidor.
**Olívio Alves de Souza Neto é médico, cirurgião cardíaco, CEO e fundador da Ana Heath. É um executivo experiente na indústria da saúde, seja no setor privado ou no público. Com experiência no desenvolvimento de modelos de negócios inovadores, tendo apoiado diversos empreendedores.