“Como o deep learning está revolucionando a medicina”, por Giovanni Guido Cerri

É difícil calcular o quanto a tecnologia digital vem transformando a medicina. Desde que ferramentas como a inteligência artificial (IA) deixaram de ser assunto das obras de ficção científica para se integrarem ao nosso cotidiano, as possibilidades de aprimoramento técnico na área da saúde se tornaram quase infinitas.

Hoje gostaria de tratar de apenas uma das facetas dessa revolução tecnológica derivada da inteligência artificial, o chamado deep learning. Essa tal “aprendizagem profunda” é uma modalidade de machine learning, isto é, de aplicação que permite que um computador adquira certas habilidades sozinho, sem que um programador precise treiná-lo.

Com uma rede neural artificial, a máquina é capaz de estudar um enorme volume de dados. A partir disso, ela identifica padrões, ou aprende a executar certas tarefas.

Pense, por exemplo, naqueles filtros tão populares nas redes sociais, que inserem sobre o rosto desenhos, mensagens e animações, ou que até alteram a fisionomia do usuário para “embeleza-lo”. Essa brincadeira só é possível porque o sistema que a executa estudou milhões de rostos humanos e hoje é capaz de identificar os elementos básicos de qualquer rosto – embora sejamos todos diferentes uns dos outros.

O cerne do deep learning é justamente essa quantidade gigantesca de dados – ou, no jargão tecnológico, Big Data – que uma equipe humana jamais seria capaz de escrutinar. Por meio de algoritmos, o computador assimila esses dados e, a partir deles, aprende a identificar sons, imagens, a fazer previsões ou até a “conversar”.

É claro que uma tecnologia tão poderosa e promissora não ficaria restrita às brincadeiras das redes sociais. Na saúde, pesquisas recentes vêm comprovando o potencial do deep learning sobretudo quando atrelada à radiologia e à análise de exames de imagem.

É o caso de um trabalho pioneiro realizado na Universidade Emory, nos Estados Unidos, que utilizou um modelo de deep learning para prever risco de diabetes a partir de simples radiografias de tórax.

Há uma correlação já apontada em outras pesquisas entre a gordura visceral no abdômen e na parte superior do tronco e quadros de hipertensão, resistência à insulina e diabetes tipo 2. O sistema desenvolvido pelos pesquisadores estudou radiografias de 160 mil pacientes para identificar esse tipo de gordura e, a partir da análise dessas imagens, calcular o risco de diabetes com até três anos de antecedência.

A grande vantagem aqui é o fato de que esses pacientes não atendiam às diretrizes de risco elevado. Ou seja, eles realizaram suas radiografias de tórax por quaisquer outros motivos e, com base nos critérios “tradicionais” de previsão, muitos deles não seriam encaminhados para um acompanhamento de diabetes até que a doença se manifestasse.

Aqui fica claro o potencial do deep learning no campo da saúde preventiva, sobretudo quando consideramos seu impacto no desenho de políticas públicas.

O Brasil também tem iniciativas importantes nesse sentido. O Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas, vinculado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), desenvolveu uma ferramenta capaz de identificar precocemente lesões hepáticas a partir da leitura de tomografias de abdômen.

O sistema, batizado de HepatIA, “aprendeu” a partir de tomografias de pacientes com cirrose por hepatite, câncer e pacientes saudáveis. Com isso, ele é capaz hoje de fazer triagens com até 94% de acurácia. Como sempre, vale ressaltar que esse tipo de tecnologia não substitui o olhar treinado do profissional de saúde, mas ela permite estabelecer prioridades e melhorar o fluxo de trabalho, sobretudo nos hospitais públicos, que processam muitos exames diariamente.

Assim como o sistema desenvolvido pela Universidade Emory, o HepatIA se mostra promissor como ferramenta de medicina preventiva, justamente por sua capacidade de identificar sinais de enfermidade no fígado de pacientes saudáveis e fora dos grupos de risco.

Por fim, haja vista que a tomografia revela também a massa muscular do paciente, o HepatIA se mostrou promissor na identificação de perda dessa massa (sarcopenia), o que, embora não seja avaliado rotineiramente na maioria dos casos, pode ser um fator decisivo no tratamento de pacientes oncológicos. Anomalias apontadas pela HepatIA podem resultar, por exemplo, na recomendação de um acompanhamento nutricional.

Vale ressaltar a importância do trabalho integrado entre os setores privado e público no desenvolvimento dessas ferramentas. Do primeiro emanam as principais inovações no campo da tecnologia digital; já o segundo tem a estrutura e a capilaridade necessárias para democratizar essas inovações.

O HepaIA, fruto de uma parceria entre Hospital das Clínicas, InovaHC (hub de inovação digital do Hospital das Clínicas), FAPESP e a startup Machiron, é um bom exemplo de como, no caso de aplicações revolucionárias como o deep learning, essa sincronicidade pode gerar frutos e contribuir para que os brasileiros usufruam de um sistema de saúde melhor.

Veja mais posts relacionados

Próximo Post

Healthcare Management – Edição 92

Healthcare - Edição 92

Healthcare - Edição 92

COLUNISTAS