Os 30 anos Sistema Único de Saúde – SUS, criado pela Constituição Federal outorgada em outubro de 1988, é oportunidade de reflexão sobre os caminhos que a sociedade brasileira pretende seguir para atender à uma das mais importantes demandas do Estados contemporâneos que é a operação de Sistemas Nacionais de Saúde que garantam promoção, proteção, atenção e recuperação da saúde, incorporados como marcos civilizatórios, a nosso ver irreversíveis como demanda consolidada da população.
Neste artigo trataremos de dois aspectos fundamentais da Saúde no Brasil: o financiamento e a articulação entre o público e privado no sistema.
Quanto ao financiamento, precisamos analisar e discutir de modo transparente o que a sociedade deseja e, para isso, é preciso conhecer suas “racionalidades”.
Gastos em saúde:
Em 2017, o Brasil gastou em saúde 9,1% do PIB, equivalentes a 546 bilhões de Reais, um percentual compatível com as médias de países ocidentais com os quais podemos e devemos nos comparar como economia expressiva.
Desse total de gastos em saúde R$ 231 bilhões (42,3%) são públicos (provenientes de municípios, estados e união) e destinados ao financiamento do SUS. Já os gastos privados totalizaram R$ 315 bilhões (57,7%).
Aqui nos diferenciamos negativamente de países, entre os quais estão Inglaterra, França, Espanha e Itália, pois em nenhum deles o gasto público é menor do que o privado. Essa é uma das razões pela qual podemos afirmar que além dos problemas de gestão enfrentados na esfera pública, nas empresas e demais serviços ligados ao setor da Saúde, em maior ou menor grau, o financiamento público do SUS é claramente insuficiente!
Quanto ao total de gastos privados, R$ 179 bilhões foram os recursos aplicados nas operadoras de planos e seguros de saúde por famílias e, majoritariamente por empresas em planos coletivos. Contudo os restantes R$ 136 bilhões foram gastos das famílias com compra direta de serviços e produtos da saúde, normalmente uma saída para atendimento ou complemento terapêutico não oportunizados pela negativa dos planos ou por gargalos nos acessos. Os gastos diretos das famílias com a saúde são indicadores de iniquidade do sistema e quanto maiores, pior o indicador de equidade. Nesse quesito estamos mais próximos da África do que da Europa.
Ainda, na comparação internacional, a Inglaterra, cujo Serviço Nacional de Saúde (NHS da sigla em inglês) inspirou a idealização do SUS, gasta 10% do PIB em saúde. A participação pública de gastos na saúde é superior a 80% e os gastos privados não chegam a 20%. É claro que o valor per capita do PIB inglês é 4 vezes superior ao brasileiro, mas países com economias comparáveis também gastam mais que nós.
A exceção são os Estados Unidos que gastam quase 17% do seu PIB com saúde, têm o gasto privado pouco superior a 50% e têm enfrentado problemas, mesmo com a economia mais rica do mundo para sustentar um sistema baseado nessa configuração de gastos comandados pelo mercado (que tem alguma regulação via renúncias fiscais, sistemas compensatórios como Medicaid e Medicare).
No Brasil, em termos de cobertura, o SUS atende a 207 milhões de habitantes com uma quantidade de entregas que vão das vigilâncias epidemiológica, sanitária, ambiental e vacinas gratuitas, ao transplante, assistência farmacêutica de alto custo, além de componente básico do programa de combate à AIDS e Hepatite C, entre outras.
A saúde suplementar, cobre pouco mais de 43 milhões de habitantes, 24% da população e realiza, notadamente, procedimentos assistenciais ambulatoriais e hospitalares, com coberturas limitadas pelos contratos e normas reguladoras da ANS.
Os custos não são diretamente comparáveis entre SUS e saúde suplementar – que tem um per capita 3,5 vezes maior do que o público – assim como as entregas recíprocas que são bem diversas, mas uma discussão sobre eficiência pode ajudar aos setores público e privado, igualmente.
O maior problema não é somente os custos comparados mas a lógica perversa: temos 47 milhões de habitantes com dupla cobertura de sistemas, revelando desperdício insuportável para a economia do país com entregas aquém das necessidades.
Para se ter uma idéia os Estados Unidos tinham à época do governo de Barack Obama, 42 milhões de pessoas sem nenhuma cobertura de atenção à saúde (mesmo considerando a cobertura dos planos sociais como Medicare e Medicaid) e foi proposto um plano para co-financiar com os usuários um seguro-saúde que ampliasse a cobertura e a estendesse a esses cidadãos sem esse direito.
No Brasil, destaco, 47 milhões de usuários tem dupla-cobertura o que se torna uma questão crítica do desperdício de recursos. Todo o sistema de saúde do país é pago pela sociedade e isso merece um pacto mais claro e transparente para assegurar melhor custeio e resultados em saúde.
Relação público-privada
Isso nos remete à questão da interface público-privada e da relação que se estabelece dentro do Sistema de Saúde brasileiro entre os serviços públicos e privados.
O SUS nasceu em 1988, com três características que poderiam ter impedido sua construção. Em primeiro lugar a expansão da cobertura dos cerca de 65% da população brasileira do antigo INAMPS para um sistema universal com 100% de cobertura. A segunda característica é que essa tarefa foi executada sem uma estrutura pública prévia pois o SUS foi construído sobre os escombros do INAMPS que não tinha serviços, equipamentos e prédios próprios em número significativo e comprava serviços privados que, na assistência hospitalar respondiam por mais de 95% das internações de então. A terceira característica foi a estrutura de financiamento nunca respeitada ou suficiente. A regra de transição definida pela Constituinte: a transferência para a saúde de 30% dos recursos da Seguridade Social (DCT, art. 55) nunca foi cumprida e a incerteza foi a marca do financiamento do SUS.
Nascido com essas limitações o projeto do SUS pode ser construído graças à confluência da determinação política e da militância de profissionais de saúde dedicados, da autonomia conquistada pelos Municípios e Estados como entes federados e de um ganho extraordinário em eficiência que a transferência da gestão federal para os municípios conseguiu produzir.
O SUS se consolidou em parceria com o setor privado dos Hospitais Filantrópicos sem fins lucrativos, estratégicos para consolidar a assistência que hoje atende 45% das internações, a maioria dos procedimentos de alta complexidade, além de ampla rede de serviços auxiliares de diagnóstico e terapia indispensáveis à assistência. Por outro lado, expandiu e consolidou uma rede própria de serviços que hoje responde por outros 45% das internações do SUS. Mesmo assim, o sistema ainda compra 10% serviços de internação de Hospitais Privados lucrativos.
Na verdade, a origem pública dos recursos do SUS se destina à compra de material e medicamentos, equipamentos e pagamentos de salário que, desta forma retornam ao mercado, sendo responsável pela operação e articulação de um extraordinário complexo industrial que a ele se associa.
Há grandes exemplos de boa gestão no SUS, com entregas custo-efetivas e eficazes, como o Programa Nacional de DST/AIDS que distribui gratuitamente medicamentos de ponta aos portadores do vírus; o Programa de Saúde da Família que conseguiu em 20 anos reduzir a mortalidade infantil de mais de 100 para cerca de 14 óbitos de menores de um ano por mil nascidos vivos; a vacinação gratuita que erradicou a Pólio, controlou (até agora) o Sarampo e protege os Idosos, Gestantes e grupos vulneráveis; e o maior programa de transplante público de órgãos do mundo, entre os modelos internacionais de sucesso.
Existem muitos problemas a serem resolvidos em um sistema tão jovem e mal financiado, mas os resultados dos últimos 30 anos são admiráveis. Impossível pensar o Brasil de hoje e do futuro sem esse sistema, tanto em termos de inclusão social, como da atividade econômica que envolve.
Por outro lado, também nos últimos 20 anos cresceu e se consolidou no setor privado um complexo articulado da saúde suplementar que envolve operadores de planos e seguros de saúde, corretores, prestadores de serviços e uma rede de profissionais associados sob contrato. Esse setor tem um crescimento contínuo até 2015, chegando a cobrir 50,3 milhões de vidas, nos últimos anos teve uma redução de cerca de 3 milhões de vidas de cobertura, às custas da redução em planos antigos. Os novos planos, coletivos com regras de correção mais flexíveis foram expandidos no período. Da mesma forma, as margens entre o faturamento e os gastos com assistência tem se mantido e expandido, segundo relatórios da Agência Nacional de Saúde (ANS), órgão de regulação federal. A redução parece ter se concentrado nos adultos jovens, crianças e adolescentes, provavelmente resultado do aumento do desemprego formal.
Esse universo de prestadores privados que não atendem assistencialmente ao SUS, é constituído por atores, nem sempre articulados e muito heterogêneos que vão de serviços pouco complexos ambulatoriais até grandes hospitais de excelência. De pequenas operadoras de planos de saúde a grandes bancos e seguradoras com capital nacional e internacional. No entanto, a tendência do mercado tem sido de consolidação do capital e de concentração em grandes grupos, que favorecem a verticalização dos serviços e um maior controle sobre os custos e as margens dos negócios.
Esses players disputam um mercado que tem um faturamento anual de R$ 179 milhões.
O diálogo político entre esses dois “mundos,” público e privado, tem sido truncado por vários fatores ao longo das últimas décadas, muito embora, a interoperabilidade entre serviços públicos e privados tenha se consolidado na compra de serviços, na construção de parcerias e de novos contratos de gestão estruturados.
Parcerias como solução
Uma grande contribuição para a interface público-privada foi concretizada pelos mecanismos de agilização de serviços e programas públicos através dos contratos de gestão com Organizações Sociais de Saúde – OS (1998) e de Termos de Parceria com OSCIP (1999). Sobretudo a oportunidade de ter os históricos parceiros filantrópicos e outras organizações sem finalidade comercial qualificados como OS, renovou a capacidade de gestão de serviços complexos como hospitais de modo mais ágil e viabilizou, tanto a operação dos serviços, quanto a regra de responsabilidade fiscal que, em contradição com a universalidade constitucional do acesso a saúde, limita as contratações o que inviabiliza o setor.
Em 2004, Lei Federal criou as Parcerias Público Privadas (PPP) como forma de captar o financiamento privado para projetos de interesse público, em áreas estratégicas como saneamento, saúde, concessões de rodovias e outros. Por essa regra, um hospital é construído pelo setor privado e, quando entregue, passa a ter o seu capital remunerado em longo prazo (até 35 anos, inclusive com lucro), a operação é realizada pelo privado ou por entidade contratada e tem o seu recurso garantido num fundo constituído para esse fim. Os recursos empregados em PPP são limitados a 5% das Receitas Correntes Líquidas (RCL) do ente federado.
Essas inovações nas parcerias público-privadas vêm ampliar a relação dentro do sistema que sempre existiu através de contratos de gestão, convênios, compras diretas, licitações, termos de cooperação e parceria.
Ressalte-se que, são inúmeros os problemas que têm que ser enfrentados para gerar resultados que sejam socialmente necessários, eticamente aceitáveis e financeiramente apropriados.
O grande desafio parece ser potencializar uma virtuosa rede de cooperação onde o foco principal seja a entrega de valor aos pacientes, à sociedade. Que a eficiência mais do que uma necessidade comercial, seja um imperativo ético de boa utilização de recursos públicos e privados.
Para isso temos muitos exemplos positivos do público que têm sido aproveitados pela área privada, como a Estratégia de Saúde da Família e o papel do médico de saúde da família, como o Gatekeaper (no modelo da Kaiser Permanent americana) ou o General Practitioner Surgery – GP (do HNS inglês) que tem sido aproveitado pelas operadoras em modelos mais eficientes e eficazes de projetos assistenciais verticalizados.
Por outro lado, a gestão pública pode se beneficiar dos ganhos em capacidade de gestão que os entes privados têm desenvolvido. São aprendizados recíprocos e intercambiáveis.
É preciso construir uma noção integrada e compartilhada de saúde como bem comum em que possa haver “coopetição” (cooperação + competição) entre o púbico e o privado no sentido de construir valor para o paciente, talvez esse um remédio para o nosso sistema de saúde*.
*no título do livro de Regina Herzlinger, professora de Harvard
Artigo escrito por Sérgio Zanetta, médico sanitarista e administrador hospitalar, mestre em ciências pela FMUSP.
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