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Entendendo a diferença entre intercorrência e erro médico

Nos últimos meses, o país tem assistido a um fenômeno preocupante: o aumento expressivo das ações judiciais contra médicos e hospitais, muitas vezes movidas por uma confusão entre dois conceitos distintos, intercorrência e erro médico.

Segundo dados recentes, o número de processos cresceu mais de 500% em 2024.

O cenário revela um alerta importante: é preciso compreender melhor os limites da atuação médica e a imprevisibilidade que acompanha o exercício da profissão.

Entendendo a diferença entre intercorrência e erro médico

Intercorrência é uma complicação que pode ocorrer mesmo quando o atendimento segue todos os protocolos e cuidados recomendados.

Trata-se de um evento inesperado, mas possível, dentro da natureza de um procedimento médico.

Em outras palavras, é algo que pode acontecer apesar de todo o preparo e da boa prática.

Já o erro médico se caracteriza quando há falha técnica, negligência, imprudência ou imperícia.

É quando o profissional, de alguma forma, se afasta do padrão aceito pela medicina ou deixa de agir com o cuidado necessário.

Essa diferença, que parece simples no campo técnico, torna-se nebulosa fora dele.

E é justamente nessa zona cinzenta que muitas ações judiciais surgem.

Quando a comunicação entre médico e paciente é falha, ou quando o prontuário não registra adequadamente os detalhes do atendimento, abre-se espaço para interpretações equivocadas.

Como costumo dizer, “o que não está no prontuário, não existiu”.

Uma complicação pode ser compreensível, desde que o risco tenha sido previsto, informado e acompanhado de forma responsável.

Já o erro exige prova de que houve falha na conduta.

Entender essa fronteira é essencial para que se evitem injustiças e para que o Judiciário possa agir com base em critérios técnicos, e não apenas na percepção do resultado de um tratamento.

O crescimento das ações e seus impactos

O aumento das demandas judiciais tem várias causas.

O acesso facilitado ao sistema de Justiça, a digitalização dos processos e o maior conhecimento dos pacientes sobre seus direitos contribuíram para essa explosão.

Soma-se a isso a sobrecarga do sistema de saúde, que convive com escassez de recursos, plantões exaustivos e equipes reduzidas.

Nesse cenário, o risco de falhas ou de insatisfação do paciente cresce naturalmente.

Outro fator relevante é a vulnerabilidade na defesa técnica.

Muitos processos são abertos sem base científica sólida, o que leva à absolvição da maioria dos
profissionais.

Ainda assim, cada ação representa desgaste, medo e insegurança. E, quando isso se repete em larga escala, o reflexo vai além do tribunal: afeta a forma como a medicina é praticada.

A chamada “medicina defensiva”, em que o médico age movido pelo receio de ser processado, e não pela necessidade real do paciente, já é uma realidade.

Isso encarece o sistema, aumenta os pedidos de exames desnecessários e, paradoxalmente, distancia o profissional da essência do cuidado humano.

Hospitais e clínicas também sofrem com o aumento dos custos, do tempo administrativo e da desmotivação de suas equipes.

Caminhos para uma relação mais equilibrada

É fundamental buscar o equilíbrio entre o direito do paciente e a segurança do profissional.

A AHOSP defende que toda ação judicial envolvendo médicos e hospitais seja precedida por uma análise técnica qualificada.

Isso ajudaria a filtrar processos sem fundamento e reduziria a sobrecarga do Judiciário.

Também é necessário fortalecer as câmaras de mediação e conciliação especializadas, que permitem resolver conflitos de forma mais rápida, justa e menos traumática.

Outro ponto essencial é aprimorar o consentimento informado.

O paciente precisa compreender claramente os riscos de cada procedimento e participar das decisões sobre sua saúde de maneira consciente.

A cultura de segurança do paciente deve ser prioridade.

Protocolos bem definidos, registros eletrônicos detalhados e comunicação clara são pilares que protegem tanto o paciente quanto o profissional.

A formação médica, por sua vez, deve incluir não apenas técnica, mas também habilidades de empatia, diálogo e
documentação responsável.

A diferença entre intercorrência e erro médico vai muito além de uma discussão acadêmica.

Ela toca diretamente na justiça, na ética e na confiança entre médico e paciente.

Quando esses conceitos se confundem, quem perde é toda a sociedade.

Proteger o bom exercício da medicina não significa acobertar falhas, mas garantir que cada caso seja avaliado com responsabilidade, técnica e equilíbrio.

Médicos e pacientes devem caminhar lado a lado, com diálogo e transparência, em busca do mesmo objetivo: a preservação da vida e da confiança que sustenta o ato de cuidar.

 

*Por Anis Mitri – Presidente da Associação de Hospitais e Serviços de Saúde do Estado de São Paulo (AHOSP).

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