Referências: Geografia Econômica da Saúde no Brasil e Jornada da Gestão em Saúde no Brasil
(*) todos os gráficos e ilustrações são partes integrantes do Estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil e do material didático dos cursos da Jornada da Gestão em Saúde e da Escepti
Olhando a ilustração:
- Na figura mais acima … seria possível regular indústrias que fabricam sapatos, carros, brinquedos, relógios … da mesma forma, por que são indústrias ?
- Na figura mais abaixo … seria possível regular da mesma forma empresas do tipo banco, comércio, indústria, serviços, publicidade … ?
- Acredito que não existe dúvida de que a resposta para as duas perguntas é não !
Neste sábado fui ministrar uma aula em uma turma de pós-graduação da Faculdade Einstein aqui em São Paulo sobre Sustentabilidade e Panorama da Saúde Suplementar no Brasil … nunca posso esquecer de agradecer a oportunidade que as Professoras Deise de Carvalho, Glauce Roseane de Almeida Brito e Marcela Marrach Coutinho me oferecem de poder discutir temas assim em turmas que têm profissionais que atuam em operadoras, hospitais, fornecedores … poder discutir sem o viés do interesse de “algum dos lados da mesa: não tem preço” … muito obrigado !
A saúde suplementar no Brasil tomou um rumo inadequado:
- Ao invés de regular a saúde … porque o que a população necessita é a saúde seja pública ou privada …
- … escolheu regular o intermediário entre quem necessita da saúde (o paciente) e quem presta serviços de saúde (hospitais, clinicas, CDIs, consultórios) … escolheu regular a operadora de planos de saúde e a administradora de benefícios;
- Uma péssima escolha que tem resultado em produtos entregues para a população cada vez mais restritos … na média com pior qualidade … e ao longo do tempo servindo de barreira para inovação nos cuidados;
- Porque estas empresas, por mais que o seu discurso possa ser diferente, são instituições que atuam com foco financeiro … algumas até “praticam saúde”, mas o foco principal da forma como o mercado que atuam é regulado só pode ser sustentabilidade financeira, lucro, e coisas do tipo !
- Antes de criticar as operadoras, é necessário entender que elas nada mais são do que o fruto da regulação … não foi a regulação que foi sendo criada através da atuação das operadoras … infelizmente foi o inverso !!
A ANS não regula mal porque seus profissionais são “descapacitados” ou “do mal” … é porque o rumo do controle da saúde suplementar fez com que ela caísse em algo parecido com “areia movediça”:
- Como não é possível regular de forma adequada, vai remendando conforme a própria regulação vai criando problemas de sustentabilidade para as operadoras … quando voce “olha” o conjunto das RNs enxerga aquela “colcha de retalhos” que aparecia nos filmes antigos (quando consertar alguma coisa era mais barata do que descartar e comprar um novo);
- A cada nova regulação, “um monte” de outras passa a ser necessário para “não afundar na areia”;
- Dá dó de ver o esforço dos profissionais da ANS em tentar corrigir o rumo de uma regulação que a cada dia que passa tem menor chance de ter sucesso;
- E “trocando o pneu com o carro andando” … mal sai uma nova RN para consertar a antiga, antes que o mercado passe a se adequar, lá vem outra … e para os profissionais de regulação das operadoras fica difícil entender o que está realmente valendo para determinadas coisas !
Nesta nova ilustração a figura mais acima ilustra que, apesar de serem rotuladas pelo mesmo nome (operadora de planos de saúde) oferecem produtos que não têm nada a ver uns com os outros:
- Individual, e/ou Coletivo e/ou Por Adesão;
- Assistência Médica e Odontológica, e/ou Exclusivamente Odontológica;
- Hospitalar e/ou Ambulatorial;
- Com ou sem Obstetrícia.
Para quem não é do ramo: combinando os parâmetros acima (os que podem ser combinados), e acrescentando “elementos comerciais” como PME (pequenas e médias empresas), abrangência regional e outras … temos sapatos, carros, relógios, brinquedos … tudo tentando ser regulado da mesma forma !
O “chose de loc” não para por aí …
A figura mais abaixo ilustra que as operadoras são classificadas pela ANS segundo o que ela entende como motivação para atuar na saúde suplementar:
- As modalidades: autogestão, filantropia, cooperativa médica, cooperativa odontológica, medicina de grupo, odontologia de grupo, seguradora e administradora de benefícios;
- A regulação imagina que empresas de capital aberto, cooperativas de profissionais, empresas de utilidade pública, financeiras, empresas de sociedade limitada … têm o mesmo foco quando o assunto é operar planos de saúde … imagine se isso tem alguma chance de ser verdade !
Para quem não é do ramo, estes tipos de modalidade são combinados com os tipos de produto descritos logo acima … as dezenas de combinações possíveis passam então facilmente das centenas.
Observando alguns números do próprio site da ANS vemos o resultado …
Começando com a diferença entre gerir planos de assistência médica e odontológica, e planos exclusivamente odontológicos:
- O gráfico demonstra a evolução da rentabilidade média destes dois tipos entre 2019 e 2021 – antes, durante e quase ao final da pandemia;
- Perceba que enquanto as exclusivamente odontológicas, embora tenham tido queda em 2021, tiveram ao longo do período evolução (“meio que discreta”), as de assistência médica e odontológica primeiro aumentaram a rentabilidade no início da pandemia (2019-2020) e depois em 2021 tiveram, na média, prejuízo (quando fazemos a média de todas).
Bem … acredito que isso seja suficiente para “execrar” qualquer tipo de argumento de que o produto assistência médica tenha alguma coisa a ver com o produto assistência odontológica … embora sejam “uma espécie de farinha do mesmo saco”, é difícil acreditar que uma mesma agência reguladora consiga produzir regulação que tenha algum índice de aderência para 2 tipos de negócios que reagem de forma tão diferente em função “das agruras” da economia geral … ou global !
Este gráfico demonstra tickets médios por modalidade de operadora em 2021:
- Ticket médio e o valor médio … no caso deste gráfico: anual;
- TM CP é o de receitas de contraprestação, ou seja, aquilo que a operadora cobra do beneficiário do plano (ou da empresa contratante de planos coletivos por beneficiário);
- TM Assistencial é o dos gastos pagos pelas operadoras aos serviços que prestam assistência (hospitais, clinicas, CDIs, Laboratórios, Consultórios …) aos seus beneficiários.
- Não estamos falando de diferenças de 5, 10, 15 % … mesmo isolando as de assistência exclusivamente odontológica em que o ticket médio é “ridiculamente menor” que as das outras, temos diferenças de mais de 3 vezes;
- Porque se formos comparar o produto assistência odontológica com o de assistência médica vemos variações de ~10 até ~70 vezes – nada a ver um produto com o outro !
Qualquer produto que voce possa imaginar cuja variação de preço seja o tripo que o outro, não é o mesmo produto … não é nem questão de separar carro de sapato … se um carro custa 3 vezes mais que outro, pode ter o nome de carro, ambos podem ter como objetivo a locomoção … mas que não é o mesmo produto … não é mesmo !
Veja a diferença gritante entre o produto que a autogestão entrega para seu cliente (o beneficiário do plano) e o produto que a medicina de grupo entrega para o seu:
- É um pecado enquadrar as duas na mesma regulação … estão no mercado da saúde suplementar por motivos absolutamente diferentes … não têm como atuar da mesma forma;
- No caso das autogestões, ainda, uma Cassi que está vinculada a uma empresa do segmento financeiro não tem como funcionar da mesma forma que uma Metrus, do segmento de transportes … por mais que sejam empresas apartadas da mantenedora, “a cabeça” dos gestores não têm nada a ver uma com a outra, porque as mantenedoras “têm cabeças” completamente diferente … e consequentemente o foco da gestão também;
- Não é somente uma questão de separar por modalidades como faz a regulação … ela mistura “água e vinho” … uma mata a sede, outra dá prazer, mas em ambos os casos se a regulação for única e inadequada, “afoga … deixa de fogo” se é que me entende !
Tem uma modalidade definida como a ANS chamada filantropia:
- Com todo o respeito que devemos ter pelas instituições de utilidade pública, que sustentam tanto a saúde pública como a saúde suplementar em várias regiões do Brasil … sem elas nestas regiões o acesso à saude seria praticamente inexistente, especialmente na alta complexidade …
- … com todo o respeito que elas merecem … devemos muito a elas …
- … a maioria delas não possui “inteligência administrativa” para classificar seus gastos e despesas adequadamente … a maioria deles nem se obriga a isso pelas regras tributárias … reforçando: a maioria não quer dizer todas;
- Se nem para questões tributárias têm motivação para classificar receitas e gastos … quanto mais para “satisfazer a vontade da regulação da ANS”, que coloca este tipo de empresa na mesma regulação de empresas cuja especialidade é obter lucro … justamente aquilo que a filantrópica, no seu principal objetivo social, não prioriza na agenda !
O resultado é este que vemos no gráfico:
- Acabam classificando como “outras” … outras receitas, outras despesas;
- Em outras tem assistencial, administrativo, comercial … “tudo junto e misturado” !
- Vamos lembrar que estes números vêm do próprio site da ANS – a agência reguladora !!
O cenário só não é pior, porque quando falamos de filantrópicas operadoras, e não filantrópicas de prestação de serviços de saúde, são poucas em relação ao total … mas querer regular estas instituições que têm redes próprias importantíssimas para os sistemas de financiamento da saúde, tanto privado como público, da mesma forma que são reguladas empresas de capital privado, sociedades anônimas … “chose de loc ao quadrado” !!
Quando olhamos o ticket médio de despesas administrativas, ou seja, aquilo que a operadora tem de despesa para operar os planos, e não para prestar assistência médica aos beneficiários:
- Novamente … comparando assistência médica e odontológica x exclusivamente odontológica … fora de cogitação misturar “alhos com bugalhos”;
- E mesmo nas demais, seguradoras que são empresas “infinitamente mais compliance” que as demais por estarem vinculadas às empresas que atuam no segmento financeiro, gastam a metade do que gastam as autogestões onde encontramos institutos de previdência de secretarias municipais de saúde, transportes, senado, câmaras de deputados … instituições onde o plano de saúde dos funcionários tem peso insignificante nos seus gastos, e não demandam tanto foco assim na gestão dos custos de administração !
Em junho e julho abrimos turmas de cursos que discutem como a regulação interfere mais ou menos em cada tipo de relação entre operadora de plano de saúde e serviço de saúde:
- GNAS02 – Práticas Comerciais da Área da Saúde Pública e Privada no Brasil;
- GNAS17 – Melhores Práticas da Gestão do Faturamento em Hospitais, Clínicas e Centros de Diagnósticos na Saúde Suplementar e no SUS;
- GNAS12 – Como Avaliar Preços de Pacotes em Hospitais, Clínicas e Centros de Diagnósticos;
- GNAS13 – Como Definir e Precificar Pacotes em Operadoras de Planos de Saúde
- Informações na página jgs.net.br.
No primeiro deles, por exemplo, discutimos como muitos aspectos da regulação são tão pouco aderentes neste cenário, que alguma coisa que seja gravíssima (ou muito difícil de ser cumprida) em algumas, é “cafezinho” para outras:
- Outras que se a regulação da ANS não existisse não faria diferença alguma;
- Entendendo …
- … a maior regulação da autogestão é a própria mantenedora, que cria uma empresa para prestar a melhor assistência médica possível e discute a contribuição da empresa e dos beneficiários em função disso;
- … já para quem atua no mercado vendendo planos de saúde para obter lucro a lógica é completamente inversa: que tipo de assistência eu posso prestar dentro do orçamento planejado, e dentro das regras de regulação;
- É muito gratificante quando a gente vê os participantes perceberem que para a primeira, existir ou não ANS não faz diferença … para a segunda, se não existir a ANS estaríamos vendo venda de planos de saúde que só cobrem “pajelança” … não é claro ?
No segundo discutimos como o processo de formação das contas dentro do hospital é afetado dependendo do tipo de fonte pagadora:
- O processo assistencial, pelo menos na minha realidade … na minha experiência … é a mesma … graças a Deus !
- Mas o que vai ser cobrado … como vai ser cobrado … quando vai ser cobrado … depende da real parceria e interesse que a fonte pagadora tem em relação ao seu beneficiário;
- Então, diferente do processo assistencial que é o mesmo e impõe que o processo de formação das contas seja o mesmo … o que vai ser apresentado para a fonte pagadora varia “da água para o vinho”, muitas vezes em um ciclo de “me engana que eu gosto” que não tem fim !
Nos outros 2 cursos … os de julho … discutimos como é diferente a visão dos pacotes:
- Não somente a visão que a operadora tem dos pacotes em relação à visão dos serviços de saúde … visões que não têm nada a ver uma com a outra, que exigem métodos de definição e análise completamente diferentes dependendo de que lado da mesa voce está !
- Mas visões diferentes também dos tipos de operadoras … algumas cujo foco é conta pacote … outras cujo foco é pacote para melhoria de cuidados … e infelizmente nenhuma que tive a oportunidade de conhecer com foco real em pacote associado a valor em saúde – discursa uma coisa, voce vai ver na prática, e vê outra coisa !
É muito legal encerrar este conteúdo observando o ticket médio de despesas comerciais:
- Este indicador fantástico demonstra que enquanto algumas operadoras não têm a menor necessidade de captar clientes (autogestões na regra, por exemplo), outras precisam “ralar muito” para compor uma carteira que viabilize a operação dos planos;
- Seguradoras que têm rede própria insignificante quando comparadas com Cooperativas Médicas e Medicinas de Grupo, não têm um hospital próprio com “fachada de vidro reluzente” para fazer propaganda do seu produto … necessitam investir muito mais em ações comerciais e desenvolver parcerias com outros intermediários (administradoras de benefícios, corretoras …) para se sustentar;
- Olhando para este gráfico … fala sério … tem alguma chance de uma mesma regulação aderir de forma adequada para todas elas ?
Ter discernimento sobre este assunto que discutimos aqui não é somente importante para os gestores de planos de saúde … para que entendam as diferenças do seu produto com os produtos das concorrentes na sua região:
- Este discernimento é igualmente importante para gestores de serviços de saúde;
- Especialmente … muito especialmente … muito muito especialmente para administradores hospitalares;
- Saber tratar de forma diferente as operadoras, entendendo que não são iguais, o que motiva cada uma … é fundamental para manter a sustentabilidade do serviço, desenvolver parcerias.
É importante saber disso para entender quem realmente está em busca de melhoria da qualidade assistencial, e de quem tem como prioridade somente “impedir que a última linha do balanço seja grafada em vermelho” !
É uma dessas coisas que “macacos velhos” como eu leva em consideração quando vem alguém “com papo de aranha” falar sobre valor em saúde … saber “separar o joio do trigo” nessas horas faz com que a gente perca menos tempo … e quando a gente vai ficando mais velho, tem menos tempo de vida … menos tempo para perder com conversa fiada entende ?
Não existe nada que aponte para a mudança de foco e escopo da ANS … infelizmente.
Estamos em um ano eleitoral em que nenhum indício de intenção de mudar este canário se apresenta … de novo a mesma conversa de “Posto Ipiranga” de sempre !
A tendência é a dos profissionais da ANS tentarem tirar “água de pedra”, mas a cada movimento afundar um pouco mais na “areia movediça” … porque o problema da regulação não é técnico, ou de capacitação … é estrutural:
- Conheço dezenas (quem sabe centenas !) de profissionais que gostariam de dizer isso … mas não podem !
- Quase 100 % deles têm vínculo empregatício com operadora ou serviço de saúde, e se verbalizarem tudo que gostariam vão sentir “um alívio no peito” … mas uma “dor no bolso que não tem tamanho” … o custo-benefício de se pronunciar a respeito não vale a pena !!
- Imagine então como é esta análise custo-benefício para quem tem vínculo direto com a ANS e tem discernimento para se posicionar formalmente a respeito … não é uma decisão fácil !!!
Enio Jorge Salu tem especializações em Administração Hospitalar, Epidemiologia Hospitalar e Economia e Custos em Saúde pela FGV – Fundação Getúlio Vargas. É professor em Turmas de Pós-graduação na Faculdade Albert Einstein, Fundação Getúlio Vargas, FIA/USP, FUNDACE-FUNPEC/USP, Centro Universitário São Camilo, SENAC, CEEN/PUC-GO e Impacta. Coordenador Adjunto do Curso de Pós-graduação em Administração Hospitalar da Fundação Unime. Também é CEO da Escepti Consultoria e Treinamento e já foi gerente de mais de 200 projetos em operadoras de planos de saúde, hospitais, clínicas, centros de diagnósticos, secretarias de saúde e empresas fornecedoras de produtos e serviços para a área da saúde e outros segmentos de mercado.