Referências: Geografia Econômica da Saúde no Brasil e Jornada da Gestão em Saúde no Brasil
(*) todos os gráficos e ilustrações são partes integrantes do Estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil e do material didático dos cursos da Jornada da Gestão em Saúde e da Escepti
Comecei a trabalhar como “office-boy” antes de completar 14 anos de idade em uma empresa que se chamava Light:
- Era a empresa de distribuição de energia elétrica em São Paulo;
- Sua sede era onde hoje se situa um shopping que, não por coincidência, se chama Shopping Light !
- Com todo o respeito ao mestre Caetano que eternizou a esquina da Ipiranga com a São João como símbolo de Sampa, talvez por não ter nascido e crescido em “Sumpaulo”, cometeu injustiça com o da Xavier x Viaduto do Chá x Praça Ramos: a encruzilhada do Teatro, do Mappin, do Vale do Anhangabaú e da Light.
Como era “proibido” contratar funcionários menores para trabalhar já nesta época, a função era “office-boy”, mas o cargo era aprendiz de arquivista – que na verdade era outra profissão, especializada em arquivar fichas em arquivos do tipo “kardex” !
Comento isso para chamar o assunto e iniciar a prosa:
- O prédio de poucos andares tinha elevadores tipo “obra de arte”, com portas sanfonadas de bronze, tapetes finos, lustres de pingentes de vidro … uma coisa linda;
- Os elevadores (desta época) não tinham botoeiras de andares como os de hoje … tinham uma espécie de “joystick” que dava o comando de subir e descer !
- Não tinham nem sinalizadores indicando se o elevador que parou estava subindo ou descendo;
- Então necessitávamos de um operador … chamado ascensorista … para operar o joystick e dizer “sobe” – “desce” …
- … porque se deixasse que as pessoas comandassem, ia subir ou descer desordenadamente ficando indo e voltando do térreo para o 1º andar … além de ser perigoso, é claro.
A tecnologia dos elevadores evoluiu:
- Hoje nem tem mais a “cadeirinha” para o ascensorista se sentar;
- Não é mais necessário ascensorista !
Não é mais necessário na Light, nem em hospitais … na verdade várias profissões que existiam na Light e nos hospitais deixaram de existir.
Na Light trabalhava no departamento jurídico e o chefe (ex-ministro Helio Helene – muito acessível para o cargo que possuía, é bom que se diga) tinha uma secretária que datilografava todas as suas correspondências:
- Boa parte dos advogados do departamento também tinha “status” para não ter que datilografar suas correspondências … autos processuais … rabiscavam o que queriam e passavam para as datilógrafas;
- Para quem é jovem, as “máquinas de datilografia” (ilustradas na parte de cima da figura) eram o Microsoft Word ® da época – complementadas nas empresas pelas máquinas de calcular mecânicas (o Microsoft Excel ®) da época;
- As pessoas que queriam evoluir na carreira administrativa tinham que fazer um curso de datilografia – poucos sabem o significado da sequência de letras “asdfg ASDFG”: só os que fizeram o curso de datilografia;
- A máquina da direita é do modelo que utilizei em alguns empregos – voce podia “andar” em cima do teclado que ela “aguentava o tranco” de tão forte;
- A da esquerda, menos resistente, é do modelo que meu pai comprou para incentivar os filhos a aprender datilografia … e também porque queria um dia abrir um negócio próprio quando se aposentasse;
- Hoje praticamente não existem mais datilógrafos – mesmo os profissionais de maior graduação hierárquica produzem seus próprios documentos, porque a tecnologia avançou.
Na verdade não existe mais a figura do office-boy que existia antes:
- Minha principal atividade era levar o pacote de um processo (e era papel datilografado “pra caramba” em um processo – acredite !) da Light até o fórum da Praça João Mendes, passando pela Rua Direita … porque o advogado não ia “carregar este peso” e fazer tarefa tão pouco nobre”
- Como todo “boy”, este percurso de alguns minutos demorava mais de hora … por conta das paradinhas nas “lojas de discos de vinil” para ouvir as músicas que estavam nos primeiros lugares da BlackBoard e tocavam na Rádio Difusora – afinal … “ninguém é de ferro” não é verdade ?
Que saudades deste tempo em que trabalhava o dia todo, estudava a noite, tinha aula até em sábados (para fazer provas … coincidentemente chamadas de “sabatinas” ):
- Mas um tempo de muitas profissões como estas que não existem mais … porque não são mais necessárias;
- Com elas foram os desenhistas técnicos (que foi uma das minhas profissões na sequência de carreira profissional), telefonistas, telegrafistas … uma “enormidade de profissões”.
Algumas profissões que a tecnologia tornou desnecessárias “resistem bravamente”:
- Cobrador de ônibus, como se chama em São Paulo … o trocador no Rio de Janeiro;
- Sempre que algum projeto prevê a sua extinção, um movimento sindical perigoso para a eleição do político “mica”;
- E um espaço no ônibus que poderia dar mais lugares aos passageiros … mais conforto para se deslocar dentro do ônibus … fica ocupado por um profissional que não necessitamos mais;
- Pagamos mais no preço da passagem para que alguém faça algo que não necessitamos … boa parte, diga-se de passagem, de pessoas que não costumam ser, vamos dizer assim, “as mais amigáveis do mundo” quando e gente necessita de uma informação !
- A tecnologia “sempre briga” com o que chamamos de “establishment”;
- Os interesses atuais que reagem rápida, e muitas vezes violentamente, à necessidade de adaptação … aos novos tempos !
Para quem teve a oportunidade de conhecer mais de 200 hospitais em atividades profissionais como eu …
- Ô lugarzinho cheio de establishment … haja resiliência para lidar com isso !
- Em 2022 é improvável descobrir um que não tenha um sistema informatizado de prontuário … mas é improvável também descobrir um em que não exista prontuário em papel – mesmo que parcialmente em papel;
- Se o prontuário fosse 100 % eletrônico não teríamos office boy, datilógrafos, ascensoristas …
- Se o prontuário é parcialmente em papel, temos a situação atual dos cobradores de ônibus … se é que me entende !
Na década de 90 (“senta que lá vem história” de novo !) o Hospital Sírio Libanês tinha:
- Operadores de computador que rodavam relatórios (o Censo por exemplo) em determinados horários do dia para entregar para as áreas (financeiro, enfermagem …);
- Digitadores que “pegavam” as prescrições e digitavam “na tela de faturamento” para compor as contas;
- E uma série de outras profissões que já não existem mais hoje nas próprias áreas … um monte de “secretári@s” com nomes de cargo diferentes … tinha digitador de laudo, oficial de protocolo de correspondência, copeiro servindo café em todos os departamentos !
Acabar com a maioria destas profissões não foi fácil …
- Entenda … eu “jogava bola” … cruzava com eles na quadra alugada da Rua Rocha, no Bexiga … quando tinha uma dividida “eles miravam do crucifixo da minha correntinha para cima” !
- Mas imagine se o Sírio tivesse como foco manter o “emprego deles” … imagine hoje que o hospital é “gigantemente” maior do que antes se ele aguentaria os custos desta estrutura desnecessária … é claro que não !
- Aquele grupo de gestores que tive a honra de integrar naquela época, dentro da tecnologia existente, estava empenhado em fazer tudo que era necessário para que a empresa fosse a mais sustentável possível … muita honra de ter feito parte deste time, que naturalmente foi criticado pelas gerações futuras que ingressaram em tempos de novas tecnologias que não existiam na época – natural e compreensível !
Um dia poderia escrever uma enciclopédia inteira sobre tudo que passei quando nos tornamos o primeiro hospital do país a disponibilizar laudos de exames pela Internet … foi um escândalo para o establishment !
O que se espera da empresa nestes casos é tentar, ao máximo possível, capacitar estas pessoas para assumirem outras profissões:
- Muitos deles, no cenário que descrevi, deixaram de ser digitadores e se tornaram analistas de suporte, analistas de sistemas …
- Escriturários se tornaram coordenadores, gerentes e diretores em empresas e áreas que não tinham nada a ver com o que faziam na época que se preocuparam com a extinção do seu cargo;
- Ao abandonarem “a zona de conforto” que viviam, evoluíram junto com a empresa … e fora dela;
- Outro grande orgulho que carrego … apesar de alguns terem optado em não se adaptar, e colocarem “minhas canelas” em risco na quadra de futsal, até hoje tenho contato com alguns que viram oportunidade ao invés de risco !
O processo de formação do prontuário do paciente em hospitais é complexo:
- Envolve diversas etapas, e dezenas de profissões que “anamnesam”, “diagnosticam”, prescrevem, evoluem, “altam” …
- Informações estruturadas e não estruturadas … em letras, figuras, imagens e números !
E vão produzindo documentos diversos que, para serem recuperados de maneira que possam ter algum significado depois, necessitam estar armazenados adequadamente:
- Em ordem cronológica;
- E indexados em algum tipo de organizador de documentos;
- Os sistemas hospitalares … todos que conheço, e não são poucos … têm módulos para organizar estes documentos.
Mas acredite em mim … em 2022 ainda temos prontuários em papel cuja organização se dá através de fichas em arquivos do tipo “kardex” … se eu não tivesse desistido da carreira na Light teria uma chance de ser “arquivista” em hospitais ainda hoje … “é mole” ?
E em 2022 a organização dos documentos na própria área assistencial (o posto de enfermagem) ainda é feita por um funcionário administrativo:
- Comumente chamado de escriturário;
- Porque “o advogado” (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas …) não abrem mão “do datilógrafo” … “do ascensorista” … do “cobrador” !
- Como se identificar (carimbar e assinar) um documento e colocar as folhas na pastinha (se todos fizerem ao colocar já estarão em ordem cronológica) seja uma tarefa “de obrigação da administração” … algo que “não é nobre” para um profissional da assistência.
Eu sempre “defendo” o profissional assistencial quando a administração “tenta empurrar” para ele coisas que não têm a ver com a assistência:
- Como tive a oportunidade de conhecer “as entranhas” dos processos de formação de prontuários em centenas de hospitais, sei que não devemos jamais pedir para que um profissional assistencial tire o foco da assistência;
- Mas os documentos que ele produz na atividade assistencial (prescrições, evoluções, descrições de procedimentos, diagnósticos …) não se enquadram em “empurrar” atividades administrativas para eles;
- São documentos que os próprios conselhos exigem que eles produzam de forma adequada, se quiserem manter seu registro e continuar atuando na sua profissão !
Hoje, estimo que algo em torno da metade dos hospitais ainda briga contra o establishment dos escriturários nas unidades de internação:
- Ao invés de terem uma área de atendimento “clean” somente com profissionais assistenciais trabalhando de forma ordenada e organizada, e se responsabilizando pela qualidade do prontuário;
- Temos uma “figura administrativa” dentro do posto de enfermagem, geralmente sem carga de serviço suficiente para cobrir toda a sua jornada de trabalho, que fica “parando na loja para ouvir música entre a Light e o Tribunal” … entende ?
- Recebe pedido do fast food para o plantonista … ajuda a “passar a limpo” a escala da enfermagem … e em algumas épocas do ano ajuda a fazer a declaração de imposto de renda, pagar guias sindicais … verdadeiros datilógrafos !
O establishment reage à extinção do escriturário apontando erros no prontuário que geram glosas em contas:
- O administrador, invariavelmente, sentindo a “dor no bolso” recua;
- A pergunta que fica: queremos ter o prontuário organizado para que as contas dos convênios não sejam glosadas, ou queremos ter o prontuário organizado porque o prontuário é importante para a assistência do paciente ?
- Não é necessário ter o prontuário organizado para recuperar o histórico do paciente quando ele retorna ? … para ter documentação adequada nos casos de intercorrências e demandas judiciais ?
O foco é não ter glosa, e somente os prontuários que passam por auditoria de contas externa têm chance de serem “decentes” ? … todos os demais “podem ser um lixo” por que ninguém se obriga a organizar ? … é isso que queremos ?
Se a resposta é “não” … se o prontuário deve estar adequado independente da conta associada a ele ser auditada … manter escriturários para fazer o que os profissionais assistenciais deveriam fazer não é uma boa escolha !
Esta foto é de um “clipe do Raulzito na Globo”:
- A música: o carimbador maluco;
- Pode hoje em dia a gente se deparar com escriturários em unidades de internação com uma gaveta cheia de carimbos de médicos, enfermeiros … para carimbar documentos que eles não identificam para não ter glosa em contas ?
- Em 2022 a gente ver em unidades de internação reais o que era “de mentirinha” na década de 80 … “fala sério” !
Dezenas de profissões em hospitais deixaram de ter necessidade desde que entrei para a área da saúde até hoje:
- Mas centenas de novas profissões foram criadas;
- Escriturários, ou auxiliares administrativos assistenciais … são os cobradores, ou trocadores, de hoje em dia ainda em muitos hospitais !
E a gente não pode ser injusto comentando que o establishment das profissões em extinção só existe em hospitais na área da saúde:
- Posso dizer isso por conta das dezenas de projetos de consultorias em operadoras também … em dezenas em clínicas e CDIs …
- O que tem de profissão que não tem mais necessidade … “é uma enormidade”!
- Coletor de manifestação de clientes … bedel em recepção … conferente de lotes de recepção de documentos que também vêm eletronicamente … emissor de carteirinha de conveniado … é a “farra do boi” !
Por exemplo:
- Como beneficiário, recebo “do meu convênio” quase todos os dias mensagens de que abriu uma unidade especializada em XPTO em Xiririca da Serra;
- Nunca necessitei da especialidade XPTO ainda (graças a Deus) e Xiririca da Serra para mim é “lá nos quintos dos infernos”;
- Informações mais inúteis é impossível imaginar;
- Mas ainda tem gente que trabalha lá só para encher as caixas postais dos beneficiários de modo que a gente perca a vontade de ler as mensagens que chegam dela … e vai deletando tudo sem ler … as vezes deleta algo importante que era apenas o que deveria ser enviado pelo canal de comunicação;
- As pessoas envolvidas na produção e distribuição destas informações desnecessárias são hoje como ascensoristas – a empresa não entende que evoluímos e quando alguém necessita de informação vai em busca dela: “apertam o botão do andar desejado”;
- Espalhando informações como “estava na moda em 2000” … faz mais de 20 anos que isso saiu de moda … agem como o ascensorista que fala “subindo … descendo” para quem não quer pegar elevador !
- Estas pessoas encarecem o custo dos sistemas de financiamento da saúde, da mesma forma que o cobrador encarece o custo do transporte !
Tem uma coisa que não mudou “nem um pouquinho”:
- Nas consultorias quando a gente questiona a existência de determinados processos, cargos, funções, pessoas …
- … já vou colocando a mão no meu acima do meu crucifixo e encolhendo o pescoço “pra proteger a garganta” … a chance do “contragolpe violento” ainda é grande !
- Bater de frente com o establishment continua sendo uma atividade de muita emoção (e risco) !
Esta é a velha guerra da tecnologia contra a preservação de empregos em profissões que se tornam obsoletas em qualquer segmento de mercado … talvez na área da saúde a guerra seja “um pouco mais acirrada” !
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Enio Jorge Salu tem especializações em Administração Hospitalar, Epidemiologia Hospitalar e Economia e Custos em Saúde pela FGV – Fundação Getúlio Vargas. É professor em Turmas de Pós-graduação na Faculdade Albert Einstein, Fundação Getúlio Vargas, FIA/USP, FUNDACE-FUNPEC/USP, Centro Universitário São Camilo, SENAC, CEEN/PUC-GO e Impacta. Coordenador Adjunto do Curso de Pós-graduação em Administração Hospitalar da Fundação Unime. Também é CEO da Escepti Consultoria e Treinamento e já foi gerente de mais de 200 projetos em operadoras de planos de saúde, hospitais, clínicas, centros de diagnósticos, secretarias de saúde e empresas fornecedoras de produtos e serviços para a área da saúde e outros segmentos de mercado.