São 01:50 hs da madrugada e o médico intensivista chega apressado para mais um extenuante plantão de 12 horas no CTI – COVID do Hospital Moinhos de Vento. A expectativa é de um turno intenso, com 20 pacientes internados, sendo 06 deles com quadro grave e em ventilação mecânica, 04 em uma luta intensa para fugir da intubação em tratamento de alto fluxo e 10 pacientes estáveis, mas inspirando cuidados. A rotina dos últimos meses se sucede como que automática e sincronizada, de um protocolo com excelente desfecho: higiene das mãos, colocação do avental de isolamento, propés, touca, luvas, máscara N95, face shield e aplicação de doses abundantes de álcool em gel. E essa receita de sucesso irá se repetir em cada acesso a um novo leito durante todo seu plantão, garantindo sua segurança, de seus colegas e principalmente dos pacientes. Mas infelizmente essa não é a realidade na grande maioria dos hospitais brasileiros nestes meses da pior crise de saúde de nossa história.
A pandemia do novo Coronavírus, algo sem precedentes para nossa geração, colocou a prova todas as estratégias de gestão dos hospitais pelo mundo. A velocidade de disseminação da doença, associada às altas taxas de contágio, bem como o volume de pessoas infectadas e o colapso das estruturas de saúde – inaptas a atenderem tantos casos em um curto espaço de tempo – trouxeram terror e apreensão a todos os profissionais da área. Se médicos e enfermeiros sempre receberam com justo merecimento todas as distinções por atuarem na linha de frente do cuidado, sacrificando-se muitas vezes pela manutenção de uma vida, essa pandemia revelou um novo herói, discreto e anônimo em suas ações, mas que garantiu a disponibilidade de medicamentos, materiais médicos, respiradores e itens de proteção individual para toda a estrutura hospitalar. Nunca “o produto certo, no local certo a um preço justo”, foi tão valorizado pelas organizações. Quem destacou-se na elaboração e execução de estratégias de suprimentos ajustadas para este momento de quase caos, passou ileso pela tempestade.
A rotina de gestão deste “novo normal” em supply chain no meio da crise, foi desafiadora para as equipes de suprimentos. Ações coordenadas entre as mais diversas áreas, estabelecimento de comitês de enfrentamento à crise e rotinas diárias de reuniões, similares aos modelos de S&Op da indústria, foram o segredo do sucesso desde o início da COVID-19. A velocidade na tomada de decisões, o tempo de reação acelerado para mudar conceitos de coberturas de estoques, a adoção de novas padronizações, alternância de compras de itens importados para itens nacionais, relacionamentos no conceito win-win com a rede de fornecedores e principalmente o foco com dedicação integral desde a alta direção até a base da operação, foram sem dúvida, destaque e motivo de reconhecimento.
Um exemplo de ruptura e que parecia inconcebível para todo o mercado comprador, foi a quase completa suspensão dos embarques de insumos descartáveis oriundos da China, país foco inicial da pandemia no começo do ano. De repente o mundo havia mudado bruscamente e todo um mercado dominante e abastecedor estava fechado. O que fazer? Como se posicionar num mercado nacional hiper demandado, inflacionado e nada altruísta? Foram tempos difíceis, de queima dos estoques de segurança, preços exorbitantes praticados que muitas vezes beiravam o crime e principalmente da busca criativa de alternativas com valores justos no mercado interno.
A esperada retomada na normalidade do abastecimento desde a China foi demorada e angustiante, mantendo um olho na necessidade e outro nos estoques, que reduziam dia a dia. Mesmo depois de pactuados os volumes e valores, um novo fantasma foi a confirmação de embarques e a certeza dos recebimentos. As equipes de importação e logística foram fundamentais montando verdadeiras operações de guerra, com fracionamento de pedidos, mudança de escalas em aeroportos europeus que ofereciam risco no confisco de cargas e agilidade extrema na nacionalização e desembaraço dos produtos. Nunca a necessidade de baixa burocracia, o senso de urgência e criatividade na execução foram tão essenciais.
Hoje vivemos uma sensação, mesmo que tênue, de que finalmente o pico da crise está sendo superado. Ainda temos um difícil caminho de erradicação da doença, que somente será completamente concluído com a chegada das vacinas e uma imunização em massa da população. O legado de aprendizado e sofrimento com essa pandemia precisa ser assimilado e absorvido por todos. Estratégias colaborativas de compras, reforço das redes de fornecimento, aplicação de tecnologias e inovações, desenvolvimento de novos mercados fornecedores e fortalecimento da indústria nacional, são vetores fundamentais de transição para este “novo normal” em suprimentos. Aqui também, imprescindível e caminho sem volta.
** Artigo escrito por Evandro Moraes, Superintendente Administrativo e Infraestrutura do Hospital Moinhos de Vento – Porto Alegre