Mais do que uma inovação tecnológica, a interoperabilidade em saúde trata-se de uma nova lógica de cuidado: sair de uma saúde fragmentada e reativa para um cuidado contínuo, integrado e centrado no paciente.
Na prática, interoperabilidade significa que os dados médicos do cidadão — com seu consentimento — podem acompanhá-lo ao longo da vida, em diferentes instituições, regiões e situações.
Esse fluxo contínuo de informações clínicas pode fazer a diferença entre um atendimento eficaz e um risco desnecessário.
Imagine uma mulher idosa que sofre um desmaio em outra cidade, longe de seu hospital de origem.
Em vez de repetir todo o histórico ou refazer exames, o médico plantonista acessa instantaneamente alergias conhecidas, uso de anticoagulantes, cirurgias prévias e imagens diagnósticas.
O resultado é mais do que agilidade: é segurança. Menos erro, menos retrabalho, o cuidado certo no momento certo.
O mesmo vale para crianças com doenças raras, pacientes com câncer em tratamento em centros diferentes, gestantes em regiões remotas ou pessoas em situação de emergência.
Conforme a revisão sistemática publicada em 2023 na BMJ Open Quality, cerca de um em cada cinco exames laboratoriais solicitados em ambiente hospitalar é considerado desnecessário, por não agregar valor clínico ao cuidado prestado ao paciente.
Muitas dessas solicitações ocorrem simplesmente por falta de acesso a informações anteriores. Esse desperdício custa caro ao sistema — e pode custar caro também ao paciente.
Interoperabilidade como infraestrutura crítica de saúde
O InovaHC, hub de inovação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, lidera esse esforço de maneira colaborativa, reunindo hospitais, laboratórios, operadoras, farmácias e o setor público.
A iniciativa não tem a pretensão de substituir a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), mas sim de atuar como impulsionadora complementar, seguindo as diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Saúde e pela própria RNDS.
Trata-se de uma construção que dialoga com a arquitetura nacional já existente, com vistas à integração futura e ao fortalecimento do ecossistema digital de saúde no país.
Em sua primeira fase, o projeto conecta instituições privadas de referência, como Sírio-Libanês, Beneficência Portuguesa, Oswaldo Cruz, Fleury, Sabin, Dasa, e avança nas negociações com redes como RD Farmácias e Bradesco Saúde.
Trata-se de uma iniciativa aberta, colaborativa e não exclusiva — outras instituições já foram ou serão convidadas a integrar o ecossistema, de forma progressiva e alinhada aos princípios de interoperabilidade nacional.
Com previsão de operação nos próximos meses, a interoperabilidade começa a sair do plano das promessas para transformar rotinas clínicas, administrativas e, principalmente, o cuidado prestado.
Mas não basta integrar sistemas: é essencial garantir segurança, privacidade e controle efetivo por parte do paciente.
Por isso, todo o modelo segue os princípios da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), com foco em consentimento informado, rastreabilidade e transparência.
O controle sobre os dados deve estar nas mãos do cidadão desde o início: ele precisa autorizar o acesso, saber quem consultou suas informações, quando e com qual finalidade — e manter o direito de revogar esse acesso a qualquer momento.
As garantias de proteção e rastreamento seguem padrões já consolidados no sistema financeiro nacional — como aqueles utilizados no open finance —, aplicados aqui com o que há de mais avançado em segurança digital e arquitetura de dados no Brasil.
Isso assegura a integridade, a confidencialidade e a auditabilidade dos acessos em todo o ecossistema.
O projeto contempla essas garantias fundamentais: os dados não serão utilizados para fins discriminatórios ou comerciais indevidos. Pertencem exclusivamente ao paciente, que decide com quem e quando deseja compartilhá-los.
Benefícios que vão além do hospital
Os impactos se estendem também à saúde populacional. Quando conectamos farmácias, hospitais e sistemas públicos, ganhamos capacidade de rastrear surtos, monitorar vacinação, prever agravamentos e agir antes da emergência.
Em tempos de epidemias como a Covid-19 ou a dengue, a interoperabilidade se torna um instrumento de vigilância e resposta rápida.
A integração com a RNDS e com os sistemas estaduais de saúde amplia esse alcance, oferecendo aos gestores públicos a possibilidade de atuar com dados em tempo real, identificar padrões, antecipar riscos e planejar ações preventivas com maior precisão — tudo isso sem comprometer o controle individual dos dados.
A interoperabilidade também reduz a burocracia e melhora o acesso.
Pacientes que precisam de autorização para exames de alto custo, internações ou procedimentos especializados ganham tempo — e muitas vezes ganham também a chance de iniciar o tratamento antes que a doença evolua.
Transformar a jornada, ampliar a confiança
Interoperabilidade não é apenas um conceito técnico. É uma nova forma de cuidar, que reconhece o paciente de forma integral — com histórico, contexto e preferências que precisam ser respeitados ao longo de toda a jornada de saúde.
É o que permite que decisões clínicas sejam tomadas com mais informação, menos incerteza e maior segurança.
É, sobretudo, um caminho para transformar a experiência do cuidado, fortalecer a confiança no sistema e promover o uso mais sustentável dos recursos de saúde.
O projeto OpenCare, coordenado pelo InovaHC em parceria com hospitais, laboratórios e redes privadas de saúde, já demonstra na prática que essa transformação é viável.
Com governança, interoperabilidade e foco no paciente, estamos construindo um modelo colaborativo, baseado em evidência, responsabilidade e adaptado à realidade brasileira.
Não se trata de esperar por soluções prontas nem de importar modelos estrangeiros: o Brasil tem competência técnica, institucional e regulatória para liderar esse movimento.
Desde que coloque o cidadão no centro da arquitetura digital da saúde — com transparência, proteção e confiança.
Interoperabilidade não é uma escolha — é uma condição essencial para a saúde moderna. É a base de um sistema mais inteligente, seguro, sustentável e orientado por dados.
*Giovanni Guido Cerri, presidente dos Conselhos dos Institutos de Radiologia (InRad) e de Inovação Tecnológica (InovaHC), do Hospital das Clínicas da FMUSP
*Marcia Ogawa Matsubayashi, do Conselho de Inovação da Universidade de São Paulo (InovaUSP) e do Núcleo de Inovação Tecnológica do Hospital das Clínicas da FMUSP (InovaHC)
*Marco Antonio Bego, diretor executivo do Instituto de Radiologia (InRad) e do Núcleo de Inovação Tecnológica (InovaHC), do Hospital das Clínicas da FMUSP