A construção da norma internacional ISO/CD 18969:2025, que estabelece diretrizes para evidências clínicas com dispositivos médicos, foi tema de destaque na programação exclusiva da ABIMED (Associação Brasileira da Indústria de Tecnologia para Saúde) durante a Hospitalar 2025, a maior feira de saúde da América Latina.
A apresentação detalhou os avanços, desafios e expectativas em torno da nova norma, considerada um marco para a harmonização global dos processos de avaliação clínica.
Por que criar uma nova ISO para avaliação clínica?
Atualmente, fabricantes e reguladores lidam com uma multiplicidade de guias e normas para avaliação clínica, como o IMDRF (International Medical Device Regulators Forum) e orientações locais, como as da Anvisa. Contudo, muitos desses documentos são genéricos e não oferecem um passo a passo claro.
Segundo a especialista em assuntos regulatórios EMEACLA, Priscilla Lemmes, a motivação para desenvolver a ISO 18969 surgiu justamente da necessidade de uma diretriz mais objetiva e aplicável globalmente.
“O objetivo não é criar “mais uma ISO” de forma redundante, mas sim estabelecer uma referência internacional clara, que reduza discrepâncias entre processos e facilite a atuação tanto de fabricantes consolidados quanto de novos entrantes no setor”.
Principais conceitos da ISO 18969
A norma traz avanços importantes em relação à definição de conceitos chave, defende Priscilla:
- Evidência clínica: reforça a utilização de simulações e outras ferramentas modernas para avaliar segurança, eficácia e risco, ultrapassando a visão tradicional baseada exclusivamente em estudos clínicos.
- Dispositivos similares: apresenta uma definição que se distancia das formulações do MDR europeu e do IMDRF, incluindo o conceito de “predicado” e reconhecendo dispositivos quase idênticos, mas que não são extensões exatas.
- Benefício clínico: harmoniza o entendimento deste conceito, alinhando-se às definições de normas como a ISO 14971, a ISO 13485 e a ISO 14155.
Além disso, a ISO 18969 enfatiza a necessidade de alinhar a avaliação clínica ao “estado da arte” e ao padrão de cuidado (standard of care), garantindo que a escolha terapêutica seja a mais adequada para o contexto clínico.
Responsabilidade do fabricante e inovação
Um dos pontos fortes da nova norma é clarificar as responsabilidades do fabricante na condução da avaliação clínica.
Frequentemente, há confusão sobre quais tarefas cabem ao fabricante e como ele deve garantir a conformidade, mesmo quando delega partes do processo.
“A ISO 18969 busca consolidar essa responsabilidade, promovendo um modelo que valoriza a inovação sem abrir mão da segurança”, explica. A norma também reconhece o papel crescente das evidências obtidas por meio de modelagem computacional e dados do mundo real (Real-World Evidence – RWE), reforçando que a condução de estudos clínicos tradicionais deve ser feita apenas quando estritamente necessária.
Embora o IMDRF e o guia europeu Meddev sejam referências importantes, cada um apresenta limitações.
O Meddev, por exemplo, é altamente detalhado, mas restrito ao contexto regulatório da União Europeia, além de estar baseado em regulamentações antigas, como o MDD.
Já o IMDRF oferece um guia mais genérico, mas não fornece orientações específicas ou um modelo passo a passo.
Assim, a ISO 18969 “surge como uma proposta mais universal, com potencial de aplicação em múltiplos mercados e capaz de acompanhar a evolução tecnológica do setor”, comenta.
O processo de elaboração da ISO 18969
A proposta inicial para a criação da norma surgiu em 2022, a partir de um notified body europeu, que apresentou um primeiro rascunho ao grupo de investigação clínica responsável pelas normas ISO.
Embora países importantes, como Japão e Estados Unidos, inicialmente tenham rejeitado a ideia, considerando desnecessária uma nova norma devido à adesão ao IMDRF, a maioria dos membros votou pela continuidade do projeto.
Em 2023, foi elaborado o primeiro Working Draft. Após diversas rodadas de revisão e debates acalorados — realizados exclusivamente em reuniões presenciais — o grupo avançou para a criação do Committee Draft (CD), que foi amplamente distribuído para especialistas e associações ao redor do mundo, incluindo representantes brasileiros.
Próximos passos e previsão de publicação
Em maio de 2025, a fase de coleta de comentários sobre o Committee Draft (CD) foi encerrada, dando início ao processo de revisão e elaboração do Draft International Standard (DIS) — o penúltimo estágio antes da publicação oficial da ISO.
A expectativa mais otimista é que a norma possa ser publicada em 2027, mas os especialistas reconhecem que, dada a complexidade do tema e as divergências entre países, o cronograma pode se estender.
Após a publicação internacional, o processo de adoção no Brasil será conduzido pela ABNT, por meio do Comitê Brasileiro CB-026, coordenado por Nancy Rios. A tradução e adaptação podem levar cerca de um ano, projetando-se a disponibilização da norma no país por volta de 2028.
A aplicação no Brasil: obrigatória ou voluntária?
Um ponto enfatizado na apresentação é que a ISO 18969 não será uma exigência regulatória obrigatória. “Como qualquer norma ISO, ela servirá como uma referência de boas práticas, que fabricantes poderão adotar para demonstrar a robustez de seus processos”, explica Priscilla.
Embora a Anvisa possa solicitar a conformidade com a norma, não haverá um plano formal de transição ou prazos compulsórios. Assim, a ISO funcionará como uma ferramenta útil para quem deseja harmonizar processos, melhorar práticas internas ou facilitar a entrada em mercados internacionais.
Harmonização e segurança: os grandes objetivos
Ao final, a mensagem transmitida aos participantes foi clara: a ISO 18969 não é apenas “mais uma norma”, mas uma tentativa concreta de promover a harmonização global da metodologia de avaliação clínica de dispositivos médicos.
Em um setor marcado pela diversidade regulatória, a iniciativa busca oferecer uma base comum, promovendo mais segurança, eficiência e transparência nas avaliações clínicas, aspectos considerados essenciais para a inovação responsável e para a proteção da saúde pública.