Mais Médicos, mais polêmica

As reservas do presidente eleito, Jair Bolsonaro, com relação ao Mais Médicos são de longa data. Em 2013, Bolsonaro, então deputado federal, entrou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) solicitando a suspensão do programa. As principais alegações dele à época eram de que a medida provisória não atendia aos requisitos legais que exigem caráter de urgência ou emergência. Bolsonaro também criticava o mérito do programa, em razão da contratação de médicos estrangeiros e da adição de dois anos de atuação no Sistema Único de Saúde no currículo de estudantes de medicina. O então parlamentar apontava “desdobramentos inevitáveis” para a Previdência Social, além de aspectos de “extrema preocupação para a segurança nacional” devido ao aumento de estrangeiros residindo no Brasil.

Algumas dessas preocupações mostraram-se infundadas. Sem dúvida, o início do programa provocou uma grande polêmica com a chegada dos profissionais cubanos. De acordo com o Ministério da Transparência, muitas prefeituras brasileiras aproveitaram as contratações do programa para demitir outros médicos que já trabalhavam nas cidades.

Vale lembrar que no lançamento do programa instituições como CFM e AMB apontavam para esse possível deslinde. Um levantamento constatou que mais da metade dos médicos do programa substituíram outros e não reforçaram o atendimento à população, como se desejava. Algumas correções nos editais de convocação precisaram ser realizadas.

O escopo do projeto é o de melhorar e dar mais efetividade ao atendimento da população. Números divulgados pelo Ministério da Saúde apontam para o alcance desse objetivo, ao menos parcialmente. A organização de equipes de médicos especialistas em Medicina de Família e Comunidade em equipe multidisciplinares formadas por enfermeiros, dentistas e os outros profissionais trouxe um salto de resolutividade  na atenção básica. Também a exigência de que o município tivesse ao menos uma UBS para que um médico do programa fosse enviado, de forma que estruturalmente também se pode apontar uma pequena melhora na assistência aos locais antes abandonados à própria sorte, tais como  aldeias indígenas, comunidades quilombolas, assentamentos rurais e periferias, que tiveram, alguns pela primeira vez,  médicos e outros profissionais de saúde em visitas domiciliares.

Internacionalmente, a publicação Good Practices in South-South and Triangular Cooperation for Sustainable Development, primeira de uma série desenvolvida pelo Escritório das Nações Unidas para a Cooperação Sul-Sul e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), apresentou o Programa Mais Médicos como uma das boas práticas relevantes para a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Apesar disso, o Mais Médicos esteve sempre envolto em algum tipo de celeuma, ainda que demonstrasse resultados favoráveis.  O novo capítulo teve início no último dia 14 de novembro, quando o governo cubano informou a saída do  Mais Médicos do Brasil após declarações “ameaçadoras e depreciativas” do presidente eleito.  O programa tem 18.240 profissionais – sendo 8.332 cubanos. De acordo com Cuba, seus médicos atuam em 4.058 municípios, cobrindo 73% das cidades brasileiras.

Sabe-se que o convênio com o governo cubano foi feito entre Brasil e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Após Cuba anunciar a saída do programa, Bolsonaro disse via Twitter que condiciona a continuidade do programa “à aplicação de teste de capacidade, salário integral aos profissionais cubanos, hoje maior parte destinados à ditadura, e a liberdade para trazerem suas famílias” e que, “infelizmente, Cuba não aceitou”.

Afirma o governo cubano que: “Não é aceitável que se questione a dignidade, o profissionalismo e o altruísmo dos colaboradores cubanos que, com o apoio de suas famílias, prestam serviços atualmente em 67 países”.

Outra notícia que chamou atenção para o programa foi a divulgação de uma série de irregularidades encontradas após uma recente auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU)e falhas no Programa Mais Médicos, mais especificamente na execução dos contratos por parte da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Entre os principais problemas relatados pelo trabalho está a falta de transparência e de comprovação do uso dos recursos repassados pelo Ministério da Saúde. Análises de contratos que estavam em vigor entre setembro de 2013 e março de 2016 mostram que, dos R$ 4,1 bilhões repassados para a Opas como adiantamento, R$ 316 milhões não foram usados no período determinado.

Análises mostraram ainda um descompasso entre os valores de passagens pagos pela Opas e pelo Ministério da Saúde. Uma comparação mostrou que, em trechos semelhantes e nos mesmos períodos, passagens declaradas pela organização para voos nacionais custaram R$ 34,8 milhões a mais do que voos declarados pelo Ministério da Saúde. A diferença entre passagens internacionais foi ainda maior: R$ 44,8 milhões a mais. As passagens são compradas para deslocamento de profissionais do Mais Médicos.

Os recursos para a saúde no Brasil já são escassos e vive-se uma crise sem fim no atendimento básico. Deve haver investimentos significativos também na formação dos médicos especialistas para que, a longo prazo, as carências de profissionais sejam supridas e para que esses profissionais se fixem em regiões carentes de toda espécie de atendimento.

Fazem-se necessárias adequações ao programa Mais Médicos. Está sendo realizada a contratação de milhares de novos médicos rapidamente, por conta da debandada dos especialistas cubanos. Realmente, a população não pode sofrer as consequências de problemas políticos e diplomáticos que afetaram, de uma hora para outra, o atendimento em centenas de cidades. Entretanto, todos os problemas identificados devem ser analisados, pois ficaram constatados que existem graves falhas nos mecanismos de fiscalização do programa pelo Ministério da Saúde.

Apesar das resistências que o programa enfrentou e ainda enfrenta, o “avanço” na assistência à população foi, no mínimo, repleto de contradições e limitações.  Nem por isso, deixa de ser louvável como política de saúde pública. Que o novo Ministro da Saúde seja efetivo na revisão e reorganização do Mais Médicos e demais políticas públicas de atendimento básico da população brasileira.

*Sandra Franco é consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar da OAB de São José dos Campos (SP), presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde, membro do Comitê de Ética da UNESP para pesquisa em seres humanos e Doutoranda em Saúde Pública –drasandra@sfranconsultoria.com.br

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