A saúde suplementar precisa pensar em modelos de remuneração centrados em valor para o paciente, e a TI pode ajudar isso a se tornar realidade
*Por Aldir Rocha, Sócio e Consultor Sênior na Lozinsky Consultoria
A saúde suplementar é o único segmento em que o beneficiário não é percebido como o cliente final, e sim a instituição que contratou aquela operadora ou seguradora. Como afirmam os professores Michael Porter e Elizabeth Olmstead Treisberg em seu livro Repensando a Saúde, o cuidado em saúde fracassa em seu teste mais básico: não é organizado a partir de necessidades dos pacientes.
Analisada sob a perspectiva do propósito do setor, essa é uma situação crítica. Isso porque, como consequência, abrem-se brechas para que a jornada do beneficiário fique em segundo plano, atrás dos resultados financeiros, na escala de prioridades das empresas. Esta realidade, ao contrário do que pode parecer, não é vantajosa para ninguém. Basta olharmos os números do cenário brasileiro: menos de 0,5% das receitas totais do setor foram gastas com programas de prevenção, que se estabeleceram mundialmente como uma estratégia urgente e eficaz para a sustentabilidade do sistema. Enquanto isso, mais de 30% das operadoras tiveram suas margens reduzidas e/ou resultados negativos, conforme dados levantados pelo Balanço Observatório ANAHP (Associação Nacional dos Hospitais Privados), de março de 2024.
Estamos falando de uma situação que desafia o ecossistema como um todo: não se cumpre o propósito essencial do setor, tampouco se opera com resultados positivos. Ou seja: priorizar o lucro não está servindo nem mesmo para trazer lucro. O resultado dessa equação são produtos com rede reduzida, cancelamento de contratos de idosos e crônicos de alto custo, judicialização, glosas, verticalização (redes hospitalares adquirindo operadoras) e joint ventures entre concorrentes. Ou seja, há uma série de subterfúgios usados para favorecer de forma insuficiente o resultado financeiro (ou meramente sobreviver aos custos), amparando um modelo que mais onera que atende seus clientes.
Precariedade mundial
A crise de identidade do setor não é exclusivamente brasileira. O relatório de monitoramento global de 2023 da Organização Mundial da Saúde (OMS) declara que “o mundo não está no caminho certo para realizar progressos significativos rumo à cobertura universal de saúde – que se encontra estagnada desde 2015 – e que aumentou a proporção da população que enfrentou níveis catastróficos de gastos diretos com saúde”.
E qual seria o caminho certo? Divulgada em 2015, a agenda 2030 da ONU, com seus 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), tem em seu terceiro item a importância de “assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades”. Mais precisamente no item 3.8, “atingir a cobertura universal de saúde, incluindo a proteção do risco financeiro, o acesso a serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos”.
No caso do Brasil, estamos longe de cumprir esse objetivo, mesmo faltando tão pouco tempo para o seu prazo de realização. Segundo o Censo Demográfico 2022, o número de pessoas com 65 anos ou mais cresceu 57,4% em 12 anos. Estamos vivendo mais, mas nem sempre envelhecendo melhor. O aumento na prevalência de doenças crônicas como diabetes, hipertensão e obesidade pressionam os custos do sistema por cuidados contínuos cuja efetividade é questionável.
Catástrofe iminente
Os sinais de que estamos no caminho errado prenunciam um colapso. Cabe aqui uma comparação com a questão ambiental. De acordo com o relatório da IDMC (Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno, traduzido do inglês), ao final de 2023, mais de 26 milhões de pessoas atingidas por desastres naturais foram obrigadas a deixarem suas casas e cidades em busca de abrigo, número superior aos 20,2 milhões deslocados por guerras, repressão ou violência. É mais um entre os muitos alertas de sustentabilidade que foram e seguem sendo ignorados pelas lideranças mundiais, sejam elas de instituições públicas ou privadas.
Temos evidências às quais recorrer: quanto sofrimento poderia ter sido evitado em regiões afetadas por fenômenos climáticos, tal como a recente inundação no Rio Grande do Sul, se os alertas tivessem sido respeitados? Embora dependa de vários fatores inter-relacionados, a saúde suplementar pode estar igualmente próxima a uma crise dessa magnitude. Em meio aos claros sinais de fadiga, os players do setor não encontram o ponto de inflexão que apontará o caminho para um modelo empático e sustentável.
O cerne da questão está em como se desvencilhar com segurança de um modelo de remuneração que não capturou o conceito de valor, e que não considera a satisfação do beneficiário como medida de resultado. Pelo contrário, um sistema que promove o desinteresse na gestão da saúde do cliente, que, por sua vez, pressionado por reajustes anuais progressivos, vê como saída trocar de operadora ou seguradora em períodos de três em três anos. Ou seja, o churn rege a sua jornada.
É certo que o enraizamento do modelo de remuneração por evento e os riscos e custos associados de mudá-lo inibem os atores de toda a cadeia. A adoção de uma visão horizontal da jornada do beneficiário para construção de valor exige mudanças significativas na cultura organizacional das operadoras e dos prestadores de serviços, que incluam maior ênfase na colaboração, comunicação e gestão de saúde e bem-estar populacional. No entanto, todos estão imersos no curto prazo da sobrevivência ao fee-for-service. Sem o patrocínio do Ministério da Saúde e o pulso regulatório da ANS, a adoção será lenta.
Nesse contexto, o espaço para iniciativas que coloquem o desfecho clínico como base de remuneração para os contratos entre operadoras e prestadores tendem a ser iniciativas de experimentação. Mas elas são necessárias, não só porque organizam a construção de valor sob o ponto de vista do principal interessado, mas também porque introduzem na agenda estratégica das empresas uma outra perspectiva, que faz contraponto aos vícios operacionais e financeiros atuais.
Ser solução antes de ser problema
Reconhecer os alertas e as fissuras expostas no fee-for-service, bem como construir alternativas de abordagem que oxigenem as práticas do atual modelo de saúde, são temas que devem frequentar a mesa dos executivos e, mais do que nunca, das lideranças da tecnologia da informação. Afinal, dados precisam ser colhidos, interpretados, mensurados e protegidos. “Medir a saúde e o custo ao longo de todo o ciclo de atendimento é essencial para melhorar os resultados e a eficiência, e assim criar valor”, dizem os autores de Repensando a Saúde.
Isso quer dizer que os profissionais de tecnologia da informação precisam assumir seu papel estratégico na construção da transição do modelo vigente para o futuro, a partir da construção de repositórios de dados qualificados e protegidos, que meçam a saúde dos indivíduos durante todo o ciclo de pré-intervenção, intervenção e pós-intervenção – sempre resguardando sua propriedade e anonimização – e retroalimentem a cadeia.
Hoje, vemos a TI pressionada para garimpar soluções de IA, uma consequência do frenesi causado pelo ChatGPT e a inteligência artificial generativa. Isso tem ocupado as grandes empresas e boa parte das 1.381 healthtechs nacionais (segundo Report 2023 da Distrito). Mas é fundamental que as lideranças de TI adentrem as discussões e ajudem os executivos a se desviarem do hype, promovendo o uso de soluções que não só sejam capazes de evitar glosas ou otimizar agendamentos. Estas são questões importantes para a eficiência operacional e o caixa das empresas, mas não se bastam. É necessário expandir o uso dos aplicativos de inteligência artificial para que eles sejam peças de uma plataforma de sistemas empresariais complexa, dedicada a gerar dados qualificados sobre o ciclo da receita e a jornada do cliente para entrega de valor. E será justamente o conceito de plataforma que revolucionará a saúde, ampliando o acesso a ela e viabilizando a integralidade do cuidado.
A tecnologia da informação é a área que já está capacitada a desenvolver a infraestrutura que suportará essa virada de sistema. Falta a ela exercer um papel mais ativo e estratégico em nível executivo, de forma a exercer influência determinante para que essa mudança saia do papel e se torne, de fato, um modelo. E essa virada não pode tardar; afinal, não faltam sinais para nos alertar que o futuro será dramático se as atitudes certas não forem tomadas.