Em agosto de 2024, uma associação que havia proposto uma ação constitucional para impedir a abertura de novos cursos de medicina interpôs embargos de declaração no âmbito da ADC 81-DF do Supremo Tribunal Federal (STF).
O objetivo explícito do recurso é buscar uma aliança com o Ministério da Educação (MEC) para desconsiderar a decisão já proferida pela Suprema Corte. O recurso dessa associação, porém, busca validar algo que já está fora de cogitação por parte do próprio STF.
A polêmica em questão diz respeito a portarias produzidas pelo MEC (Portaria 397/2023 e 421/2023) que ofereceram mudanças regulatórias para os cursos de medicina que estão sob júdice enquanto o julgamento do STF, que debatia sobre a legalidade do andamento desses processos, estava em curso.
O MEC havia oferecido restrições ilegais aos cursos por meio da Portaria 397, mas que foram revogadas por meio da Portaria 421. Porém, no dia da publicação sobre as modificações da Portaria 421, o Ministério publicou um novo texto, por meio da Portaria 531/2023, que trouxe novos parâmetros.
Agora, a associação busca a publicação da segunda cautelar do STF para tentar aplicá-la aos processos que discutem a abertura de novos cursos de medicina. O que, inclusive, já foi feito pelo STF em 13 de agosto de 2024. Mas com o novo recurso, ela busca também confundir a questão e validar uma norma já revogada pelo tribunal, o que não produziria qualquer efeito prático.
O recurso ainda tenta validar a Portaria nº 531/2023, que revogou e substituiu as normas previamente analisadas pelo STF. A ideia subjacente é que, por ter o STF realizado uma análise cautelar sobre uma portaria anterior, essa análise preliminar deveria se estender automaticamente a todas as normas subsequentes sobre o mesmo tema. Contudo, essa linha de raciocínio ignora o fato de que a análise cautelar é, por natureza, superficial e destinada a uma decisão rápida e temporária.
O uso dessa decisão como se fosse um juízo definitivo de valor sobre todas as normas subsequentes é um claro exemplo de interpretação equivocada. Para isso, a associação também tira de contexto até mesmo uma fala do ministro Alexandre de Moraes, que não confere validação a nenhuma portaria anterior e nem mesmo à Portaria 531.
Na realidade, a nem isso nem poderia ser feito, pois medida judicial ratificada pelo plenário foi decidida quando a Corte ainda não tinha conhecimento das regras novas e nem mesmo, é claro, da revogação da norma objeto da cautelar.
A segunda medida cautelar na ADC 81-DF, do STF, que teve seu acórdão recentemente publicado, é uma decisão complexa e bem fundamentada. Nela, o STF reconheceu as competências do MEC, mas fez questão de sublinhar a necessidade de uma análise “caso a caso”, com respeito ao contraditório, ao princípio da duração razoável do processo e ao devido processo legal administrativo.
O problema já foi apontado acima: na mesma data em que este texto foi publicado, o MEC publicou a Portaria 531, que nada dizia sobre efeito contraditório e claramente buscava uma padronização no lugar da análise “caso a caso”.
Um aspecto particularmente relevante é a controvérsia em torno da “necessidade social” para a abertura de novos cursos de medicina. O STF proibiu a vinculação das cidades pré-selecionadas em editais de chamamento público à análise das cidades com necessidade social para receber esses cursos, visto que, à época da propositura dos processos judiciais, não havia cidades pré-selecionadas.
Essa correlação foi considerada um vício na já revogada Portaria 397. No entanto, a nova Portaria 531 deixou uma brecha para uso dessa referência, e o MEC, em vez de sanar o problema, regulamentou a seleção prévia através de uma Nota Técnica, possivelmente para tentar evitar que a portaria fosse questionada novamente.
Essa situação demonstra claramente o estado de incerteza regulatória que se instalou: o MEC utiliza uma norma vaga para ocultar critérios que o STF já rejeitou.
Em outros pontos, a Portaria 531/2023 impõe exigências de contrapartida maiores do que as previstas no Programa Mais Médicos e limita o número de vagas, estabelecendo máximos e mínimos que nunca foram previstos na legislação educacional anterior. Esses detalhes indicam que a norma não foi elaborada com a intenção de seguir fielmente a decisão do STF, mas sim para introduzir restrições adicionais à abertura de novos cursos de medicina.
Além disso, a decisão do STF afirma que cabe à sociedade civil “pleitear o lançamento de editais para a instalação de novos cursos em determinas localidades” e que cabe à Administração Pública “responder a esses pleitos de forma fundamentada, com publicidade e em prazo razoável”. Esse é o trecho de alcance mais amplo e de maior interesse para a sociedade geral, mas ele não é regulado a Portaria 531, o que evidencia que a norma foi construída apenas com o intuito de restringir a autorização dos cursos cujos processos administrativos estão em andamento.
Eis aí a prova cabal que a “regulamentação” que a recorrente defende é, na realidade, um conjunto de restrições para a abertura de novos cursos de medicina. E essa constatação não implica em uma defesa de uma liberdade incondicionada, mas de uma regulação justa e efetiva de toda a decisão judicial, a qual provavelmente também é anseio dos membros da associação que entrou com os pedidos de embargos.
O que o STF de fato decidiu, ao garantir o seguimento de alguns processos administrativos, é que fossem aplicadas e adaptadas algumas regras do Programa Mais Médicos de forma ampliada, inclusive, para novas localidades. Antigas portarias do MEC já foram revogadas e o STF não validou qualquer portaria retroativa ou nova.
Os recentes embargos apresentados na ADC 81-DF representam uma tentativa deliberada de reinterpretação das normas e da decisão do STF, com o objetivo de criar obstáculos adicionais à abertura de novos cursos de medicina.
O que se vê não é uma indicação de omissão, contradição ou obscuridade, tema pertinente a embargos de declaração. O que se percebe é esforço de usar a decisão da Suprema Corte como pretexto para uma regulamentação que, na prática, impede o cumprimento integral da decisão judicial e negligencia trechos dela, até, podendo até bloquear o desenvolvimento da educação médica no país.
*Edgar Jacobs é advogado especializado em direito educacional e sócio do escritório Jacobs Monteiro Advocacia.
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