Plataforma Healthcare Management. Ideias, Tendências, Líderes e Práticas - Healthcare Management

O que o Brasil pode aprender com a revolução digital da saúde na China

No segundo semestre deste ano, participei de uma missão comercial à China para conhecer tecnologias e modelos de operação que hoje colocam o país na vanguarda da saúde global. O impacto foi imediato, a China, que possui hoje 1,4 bilhão de habitantes, opera com um nível de integração, automação e precisão que causa estranhamento no olhar brasileiro. Nada ali parece “promissor”, na verdade é real, cotidiano e escalável.

Com mais de 39 mil hospitais, cerca de 8 milhões de leitos e mais de 3 bilhões de atendimentos anuais, o país transformou tecnologia em política pública e isso se reflete em hospitais inteligentes, diagnósticos acelerados por IA e um ambiente industrial pronto para sustentar a saúde digital.

No Brasil, o SUS cobre 100% da população, mas conta com uma infraestrutura menor, com cerca de 7.500 hospitais e 500 mil leitos, resultando em 2 leitos por mil habitantes, contra mais de 5 leitos por mil habitantes na China.

Mas o número bruto chinês não é o que mais impressiona, mas, sim, a transformação digital, inovação, o uso intensivo de inteligência artificial, automação, conectividade 5G e sistemas integrados de dados, e logística por drones. É justamente isso que tem chamado executivos brasileiros para observar, comparar e adaptar soluções ao contexto nacional da saúde no Brasil. A missão comercial que participei revelou, dia após dia, como essa integração funciona na prática.

Tecnologia integrada como padrão, não exceção

Em Shenzhen, cidade da China, no centro de inovação da Huawei, fornecedora global de soluções de tecnologia da informação e comunicação, testemunhei como a China levou a integração ao extremo.

Plataformas de IoT monitoram hospitais em tempo real, sistemas de armazenamento tratam milhões de imagens médicas com resiliência e segurança da informação, e algoritmos de IA auxiliam médicos na tomada de decisão, organizam agendas e personalizam tratamentos.

O que impressiona não é apenas a existência dessas tecnologias, mas o fato de funcionarem juntas. Na China, diagnósticos, históricos clínicos, dados de imagem e informações administrativas trafegam em um ecossistema padronizado, interoperável e pensado desde o início para escalar.

Por que a China consegue interoperar dados em saúde com sucesso?

Três fatores explicam essa maturidade e ajudam a entender o contraste com o Brasil:

  • Um Estado que centraliza padrões e exige interoperabilidade: O governo chinês criou diretrizes e padrões nacionais obrigatórios para sistemas de prontuário, plataformas hospitalares, equipamentos, dados clínicos e protocolos digitais. Na prática, isso significa que independentemente da cidade ou hospital, os sistemas “falam a mesma língua”.
  • Investimento massivo em infraestrutura digital: A China investiu por anos na construção de uma espinha dorsal tecnológica composta por redes de fibra ótica, 4G, 5G e data centers nacionais. Esse ambiente preparado facilita a integração de dados e uso de IA em larga escala.
  • Integração entre governo, universidades e indústria: Empresas como Huawei, MicroPort e United Imaging trabalham lado a lado com universidades e centros de pesquisa, e seus produtos já nascem interoperáveis, conectados e orientados por padrões nacionais.

O resultado é um sistema fluido, capaz de cruzar informações clínicas entre regiões, ampliar diagnósticos remotos e reduzir desigualdades geográficas. Uma meta que o Brasil ainda tenta alcançar.

A engenharia por trás da saúde chinesa

Em visita a um complexo fabril da Huawei de 1,3 milhão de m², presenciei a filosofia dos “três zeros”: Zero luz, Zero pessoas, Zero erros. Robôs, processos automatizados e esteiras inteligentes realizam tarefas de forma totalmente integrada e a precisão supera padrões. Esse rigor industrial abastece diretamente o setor de saúde, com equipamentos avançados, sensores de alta confiabilidade e sistemas preparados para grandes redes hospitalares.

Hospitais que funcionam como centros de alta tecnologia

No Sun Yat-sen University Cancer Center, o maior centro oncológico integrado da China, localizado na cidade de Guangzhou, tudo flui de forma surpreendentemente coordenada. Com mais de 2.200 leitos, o centro realiza cerca de 2 milhões de atendimentos por ano e mais de 45 mil cirurgias anuais, números que o colocam entre as instituições oncológicas mais produtivas do mundo.

Uma operação milimetricamente orquestrada por tecnologias que permitem uma jornada do paciente digital com check-in automático, reconhecimento facial para prontuários, redução drástica do tempo de admissão, sistemas preditivos para gestão de leitos, entrega de medicamentos feitas por robôs que circulam pelos corredores dos hospitais, radioterapia guiada digitalmente, ressonâncias analisadas com IA que reduzem até 50% o tempo de interpretação, com até 95% de precisão dependendo do exame.

Na cidade de Xangai, a MicroPort, empresa global de dispositivos médicos, apresentou casos de telecirurgias realizadas entre distâncias de até 12 mil quilômetros, sustentadas por redes 5G de alta estabilidade. Já a United Imaging Healthcare, fabricante de tecnologia médica, exibiu PET/CT de corpo inteiro, tomógrafos de 640 fatias e plataformas de IA aplicadas diretamente a fluxos clínicos.

O clássico Hospital Ruijin é uma das instituições mais avançados da China em terapias de alta complexidade. Um de seus marcos é o investimento em terapia de prótons, modalidade de radioterapia que utiliza partículas aceleradas para tratar tumores com extrema precisão, reduzindo danos a tecidos saudáveis.

Este hospital é um modelo observado por estrangeiros por conseguir unir investimento consistente em ciência e tecnologia, integração entre universidades, governo e indústria, padronização de dados, digitalização abrangente e infraestrutura tecnológica de alta escala.

Por que a China investe tanto em pesquisa e educação em saúde

Essa capacidade tecnológica é sustentada por uma política de longo prazo:

Educação como prioridade nacional: Universidades chinesas formam milhares de engenheiros, médicos, cientistas de dados e físicos médicos todos os anos, com programas diretamente financiados pelo governo.

Pesquisa aplicada e orientada ao mercado: Em vez de pesquisas dispersas, a China direciona investimentos a áreas estratégicas, como IA médica, biotecnologia, nanotecnologia, fusão diagnóstico-tratamento, equipamentos hospitalares, farmacêuticos e 5G/6G.

Parceria entre governo e indústria: Projetos de saúde costumam nascer de cooperação entre hospitais, empresas e universidades, o que reduz o tempo entre pesquisa e aplicação real.

Continuidade de políticas públicas: Diferentemente do Brasil, a política científica chinesa é estável e de longo prazo. O plano de inovação em saúde não muda a cada eleição.

O contraste com o Brasil: o que nos impede de avançar na mesma velocidade

Apesar dos avanços do SUS e de sua relevância social, o Brasil enfrenta barreiras profundas, como:

  • Fragmentação de sistemas e falta de padrões nacionais de dados; infraestrutura desigual, especialmente fora das capitais;
  • Burocracia nas compras públicas, que dificulta adoção de novas tecnologias;
  • Escassez de profissionais especializados em engenharia hospitalar, IA médica e interoperabilidade;
  • Investimentos instáveis em pesquisa e inovação;
  • Baixa automação hospitalar e dependência de processos manuais;
  • E rede 5G ainda restrita, sendo um impeditivo para telecirurgia e monitoramento avançado.

São desafios reais, mas que podem ser superados com políticas de longo prazo, parcerias tecnológicas e investimento inteligente.

Um futuro possível para o Setor da saúde no Brasil

Em 2025, Brasil e China firmaram cooperações para construir o primeiro hospital inteligente do país, em São Paulo, com mais de 800 leitos e infraestrutura avançada de IA. Parcerias também envolvem pesquisa em vacinas, oncologia e dispositivos médicos de última geração.

Se a China oferece a visão de um sistema massivo e altamente digitalizado, o desafio brasileiro é adaptar essas práticas à realidade nacional, mantendo a essência do SUS, que é ser universal, gratuito e integral.

A missão à China não me mostrou um modelo a ser copiado, mas um horizonte para ser adaptado. A China prova que tecnologia e saúde pública podem caminhar juntas e que integração, interoperabilidade e IA podem fortalecer um sistema universal como o SUS.

A distância entre nossos países ainda é grande, mas não intransponível. O Brasil tem talento, escala e necessidade. Falta transformar tudo isso em estratégia. Modernizar a saúde brasileira se mostra possível e urgente.

Por Andréa Rangel, Head de Negócios em Saúde da Hexa IT

Veja mais posts relacionados

Healthcare Management – Edição 100

COLUNISTAS