(*) todas as ilustrações são partes integrantes do material didático dos cursos Escepti e do Estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil
Para gestores desatentos os números são como notícias na mídia:
- Se faz um “grande escarcéu” quando alguma coisa sai do normal;
- Mas em um ou dois dias se esquece porque não percebeu o que era subliminar;
- O que era importante prestar atenção acaba percebendo somente quando o efeito causa algum impacto no seu trabalho … e as vezes nem associa uma coisa com outra, porque está ouvindo a nova notícia e também achando que não lhe diz respeito …
- Um círculo vicioso.
Nos áureos tempos da minha juventude profissional, quando trabalhei no Estadão (Jornal aqui de São Paulo), escutava os editores mais velhos ensinando jornalistas mais jovens:
- Cachorro morde homem … não é notícia;
- Homem morde o cachorro … é notícia;
- A notícia do “canonicídio” dura um ou dois dias … depois ninguém lembra nem quem foi o homem e nem a raça do cão;
- Mas nós (editores) temos obrigação entender o contexto e lembrar quando surgir algo relacionado, porque somos formadores de opinião … o jornal depende da gente !
Quantas vezes não vi este filme … e não esqueci … mais de 30 anos depois !
O gráfico mostra o valor total dos ressarcimentos das operadoras de planos de saúde ao SUS:
- A tabela mostra evolução % entre 2019 e 2020 por grupo da tabela SIGTAP;
- Números que comprovam que durante a pandemia um volume menor de beneficiários de planos de saúde fez uso da rede pública de saúde;
- Com todo o viés de uma péssima regulação a respeito por parte da ANS, é verdade: menos beneficiários utilizaram a rede pública … mesmo com muitos para tratamento de COVID-19 … menos no total.
A “notícia” é a de que foi um ano bom para as operadoras de planos de saúde, que além de arcar com menor custo na sua rede credenciada / própria porque os atendimentos eletivos “minguaram”, ainda tiveram que ressarcir “uma merreca” para o SUS … menos da metade do que pagaram em 2019 !
Pode-se olhar “a notícia” desta forma e achar que quando a pandemia acabar, as barras do gráfico vão voltar aos patamares de 2019, e assim as operadoras voltam ao cenário normal … de antes da pandemia … olhar como “o leitor do jornal”.
Ou pode-se olhar “a notícia” como o editor do jornal, e projetar um cenário pós pandemia muito diferente do que era antes.
O indicador “mais macabro” relacionado ao ressarcimento das operadoras ao SUS:
- As barras demonstram a evolução do valor ressarcido nos transplantes;
- É sabido que a maioria das operadoras não tinha rede própria ou credenciada para atender a demanda dos beneficiários em transplantes, e fazia muito uso da rede pública para isso;
- Mas como o SUS não paga tão mal pelos transplantes, quando o ressarcimento começou a agredir o bolso das operadoras, um movimento intenso de adequação da rede permeou praticamente todas elas, porque o valor do ressarcimento muitas vezes acabava sendo mais caro do que pagar para o serviço privado … ou fazer na rede própria;
- Este movimento de queda é observado no gráfico entre os anos de 2017 e 2019;
- Mas em 2020, com a pandemia, a queda foi exageradíssima … praticamente desapareceram os ressarcimentos de transplantes !
A pandemia afastou os doadores … vivos com medo de se contaminar, e mortos contaminados cujos órgão foram descartados:
- Podemos dizer que é proporcionalmente a maior demanda reprimida que existe na história da saúde;
- E no pós pandemia vai voltar muito maior do que era;
- E vai demorar anos para se alinhar ao que era … não é possível estimar quanto anos … mas não serão poucos, porque não se conseguem doadores como se conseguem outros insumos na saúde;
- Até doador de sangue ficou com medo de doar durante a pandemia, e infelizmente não aumentará o número de doadores de sangue proporcionalmente a demanda de sangue que será necessária para “colocar em dia” todas as cirurgias eletivas que foram adiadas;
- Muitas cirurgias não serão marcadas por falta de sangue, mesmo as que não necessitam na rotina, mas por precaução se reserva o sangue … vamos deixar o pouco sangue existente prioritariamente para a rotina das emergências !!
Se observarmos os ressarcimentos das operadoras ao SUS referentes às quimioterapias que os beneficiários realizam na rede pública:
- Também estavam reduzindo, na maioria dos casos, com maior ou menor intensidade entre 2017 e 2019;
- Em 2020 a queda foi absurdamente grande;
- Outro procedimento muito comum de falta de rede das operadoras … e outro procedimento que não espera … não é simples de ser adiado.
Significa dizer que a demanda reprimida é gigante:
- Quando a pandemia acabar, se a rede da operadora não era suficiente a ponto do beneficiário buscar a rede pública … será ainda mais ineficiente para suportar o volume normal mais o que ficou represado;
- Podemos imaginar a rede cheia, “vazando gente pelo ladrão” e indo para a rede pública !
Veja que em ortopedia não tínhamos um movimento tão decrescente de redução de ressarcimento ao SUS:
- Mas em 2020, esta especialidade que tem como característica a maior chance de adiamento, o ressarcimento “despencou”;
- A demanda reprimida é enorme, se considerarmos a proporção da queda !
Até parto … quantos casais não adiaram … e só estão esperando acabar a pandemia para não arriscar a vida do bebê ?
E assim vemos na cardiologia …
… no aparelho digestivo … e em todas as especialidades !
O gestor da saúde não pode ouvir que “o homem mordeu o cachorro” … que o ressarcimento reduziu em 2020 … e apenas se admirar pelo fato …
… deve entender o que levou o homem a fazer isso, e se for o caso proteger o seu cão contra uma emergente geração de “canonicidas” !!! … entender o contexto … e estar preparado para um cenário de demanda assistencial diferente do que conhecia … que dominava antes da pandemia.
- Os gestores das operadoras, devem estar preparados tanto para a falta de rede, como para a avalanche de ABI’s de ressarcimentos, porque 2020 e 2021 estão “dentro do armário” … a maioria das eletivas não desapareceu … foi apenas um adiamento, que vai se juntar com a nova demanda !
- O gestor do serviço de saúde não pode deixar passar esta oportunidade de demanda … que é enorme no início do pós pandemia, e que deve perdurar por anos após ela … porque o perfil epidemiológico mudou substancialmente com a pandemia.
- E o gestor da fonte pagadora SUS … o gestor que tem um pé na gestão e outro na política … deve estar preparado para uma pressão social sem precedentes em cima de uma rede que já “estava carente” e vai se tornar insignificante para a necessidade.
Desde que SUS e ANS legalizaram a rotina de deixar os beneficiários de planos de saúde serem atendidos na rede pública em troca do ressarcimento, isso passou a ser definitivamente um parâmetro de dimensionamento de rede para muitas operadoras:
- É um parâmetro da gestão como outro qualquer: vale mais a pena pagar o ressarcimento ou credenciar serviço / estruturar rede própria para isso ?
- Nas operadoras mais profissionalizadas esta análise é muito bem-feita: por especialidade e região, construindo mapas de custo x benefício fantásticos … muito bem desenvolvidos !
- O que estamos tratando aqui é que os parâmetros apresentação indicadores bem diferentes no pós pandemia … e não serão iguais ao pré pandemia por um longo tempo … é disso que se trata !
Enio Jorge Salu tem especializações em Administração Hospitalar, Epidemiologia Hospitalar e Economia e Custos em Saúde pela FGV – Fundação Getúlio Vargas. É professor em Turmas de Pós-graduação na Faculdade Albert Einstein, Fundação Getúlio Vargas, FIA/USP, FUNDACE-FUNPEC/USP, Centro Universitário São Camilo, SENAC, CEEN/PUC-GO e Impacta. Coordenador Adjunto do Curso de Pós-graduação em Administração Hospitalar da Fundação Unime. Também é CEO da Escepti Consultoria e Treinamento e já foi gerente de mais de 200 projetos em operadoras de planos de saúde, hospitais, clínicas, centros de diagnósticos, secretarias de saúde e empresas fornecedoras de produtos e serviços para a área da saúde e outros segmentos de mercado.