O vírus da Covid-19 poderia sobreviver até nos esgotos?, por Pedro Caetano Sanches Mancuso
É mais um questionamento que nos assombra, entre tantos que essa pandemia já nos trouxe, e permanece sem uma resposta definitiva. Um estudo conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz, em parceria com a prefeitura de Niterói, no estado do Rio de Janeiro, constatou que a média de amostras positivas para o SARS-CoV-2 da rede coletora de esgotos do município foi de 85%. Os materiais com a presença do RNA viral mapeados pelos pesquisadores brasileiros, neste projeto de vigilância ambiental, teriam potencial para infecção, ou seja, indivíduos poderiam se contaminar com a Covid-19 por essa via, mesmo com todos os indícios de que a principal forma de transmissão do coronavírus seja a inalação pelo ar de pessoa a pessoa.
Outros trabalhos publicados na revista científica Lancet Gastroenterology and Hepatology, em abril do ano passado, demonstraram a presença de RNA viral em pacientes infectados com SARS-CoV-2. A detecção do RNA de aproximadamente 50% dos pacientes analisados aconteceu onze dias após as amostras do trato respiratório dessas mesmas pessoas terem sido negativas. Isso revela que a replicação ativa do vírus no trato gastrointestinal é uma possibilidade considerável de que a rota de transmissão via feco-oral poderia ocorrer.
Os pesquisadores conseguem isolar o SARS-CoV-2 “vivo” das fezes e da urina de pessoas infectadas e demonstram que é uma forma de transmissão que ainda não pode ser descartada. O vírus da Covid-19 normalmente pode sobreviver por vários dias em um ambiente apropriado após a saída do corpo humano.
Outro ponto de atenção refere-se aos profissionais da área de saneamento básico, especialmente os operadores que trabalham no monitoramento de resíduos industriais e urbanos controlando o processo de tratamento de água e ainda aqueles que realizam manutenção de redes coletoras. Ambos estão em contato diariamente com amostras de esgotos, e suspeita-se que a inalação de aerossóis desse material pode ser uma perigosa via de transmissão do vírus.
Salienta-se ainda que a deficiência na cobertura de coleta de esgotos no Brasil, com pouco mais de 60% da população que vive nas cidades sendo atendida, contribui diretamente para o aumento da poluição hídrica, somando-se à disseminação da pandemia. Assim, estima-se um incremento na carga viral a ser despejada em rios, lagos, lagoas, mares, entre outros sem qualquer controle.
Quando há tratamento do esgoto, os métodos convencionais de desinfecção utilizados atualmente conseguem eliminar 90% dos vírus humanos gastrointestinais presentes nos esgotos domésticos. Entretanto, com relação ao SARS-CoV-2, ainda não existem respostas sobre processos ou tecnologias capazes de eliminar sua presença, uma vez que se trata de um vírus novo, com poucos estudos desenvolvidos até o momento.
Dentre os processos de desinfecção existentes, destaca-se a utilização de gás ozônio (O3), comprovadamente um potente agente oxidante, com ampla utilização em processos de tratamento de água e esgotos. O ozônio é uma molécula composta por três átomos de oxigênio que se apresenta sob a forma de gás em condições ambientais normais, sendo altamente reativo e instável, o que significa que não pode ser transportado ou armazenado, tendo de ser gerado no local de aplicação.
Em que pese o fato de que a ciência e a tecnologia estejam avidamente buscando aumentar o conhecimento sobre a Covid-19, ainda não existem informações seguras sobre os efeitos de sua presença em esgoto sanitário. Comparativamente à existência de outros organismos na água, em que o conhecimento é amplo e seguro, muito pouco se conhece sobre esse vírus, tanto do ponto de vista epidemiológico como técnico-sanitário de tratamento de esgotos.
No mais recente livro lançado pela editora Manole, Reúso de água potável como estratégia para a escassez, há um capítulo dedicado ao tema, como forma de importante e necessária reflexão. Porém, torna-se necessária a realização de estudos mais abrangentes em relação ao coronavírus e a possível contaminação também por esgotos.
* Artigo escrito por Pedro Caetano Sanches Mancuso, Professor Doutor Sênior do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), fundador e coordenador do Centro de Referência em Segurança da Água (CERSA) e consultor em Saneamento Ambiental.