“Open Gov promove inovação e eficiência na saúde”, por Giovanni Guido Cerri

Desde que foi promulgada, em 1988, a Constituição brasileira é conhecida como “Constituição Cidadã”. Há várias razões para o apelido. O país saía de um ciclo autoritário, e a nova constituição foi a primeira em décadas a ser escrita por representantes eleitos. A Carta de 1988 também é “cidadã” porque consolidou uma série de direitos fundamentais, abrindo caminho, por exemplo, para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), o qual, com suas qualidades e defeitos, existe para assegurar a universalidade desses serviços.

Mas a alcunha também se deve ao fato de que a Constituição de 1988 tem como um de seus pilares a participação direta dos cidadãos na elaboração, condução e fiscalização de políticas públicas, por meio de conselhos e demais órgãos. Nesse sentido, a lei maior brasileira é “cidadã” pois inclui a população na governança do país.

É exatamente por isso que deveríamos buscar caminhos para incorporar à gestão dos serviços públicos brasileiros mecanismos pautados pelo princípio de “Open Government” (Open Gov), ou “governo aberto”. Trata-se da ideia de que documentos e procedimentos governamentais devem estar acessíveis ao conjunto dos cidadãos, que podem então vigiar as ações da máquina pública, reduzindo as chances de corrupção, e contribuir para sua melhor eficácia.

Embora seja uma iniciativa global, o Open Gov pode ser encarado como uma evolução natural das noções de participação direta previstas na constituição brasileira. Não por acaso, há inovações jurídicas já pautadas por essa ideia. O caso mais emblemático talvez seja o da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), mas há iniciativas do tipo também no campo específico da saúde.

É o caso do Plano de Dados Abertos (PDA) do Ministério da Saúde, existente desde 2009, que disponibiliza ao público geral uma série de informações oriundas do SUS. No que diz respeito à participação cidadã direta, vale destacar, por exemplo, a elaboração Política Nacional de Saúde Mental (2001), uma lei federal que é fruto do trabalho da sociedade civil organizada.

Se o Brasil já tem iniciativas pautadas pela doutrina Open Gov, inclusive na saúde, por que intensificar agora o debate sobre esse tema? Porque a evolução recente da tecnologia digital abriu a oportunidade de aprofundarmos muito esse processo. Sobretudo após a explosão da saúde digital no contexto da pandemia, nunca foi tão fácil gerar e disponibilizar documentação relevante ao conjunto da sociedade, bem como garantir que esta possa acessar tal documentação de forma simples e em tempo real.

Vale a pena mirarmos no exemplo de um pequeno país do Leste europeu, com cerca de 1,3 milhão de habitantes, mas que, em matéria de digitalização da sociedade, talvez seja o mais avançado do mundo: a Estônia. Lá, todo cidadão possui uma espécie de RG digital, e este único documento garante acesso a praticamente todos os serviços públicos, incluindo os de saúde. Como o sistema inteiro é informatizado, cada atendimento gera um prontuário que fica disponível a qualquer outro órgão de saúde, público ou privado. Em termos práticos: um socorrista na Estônia que atende um indivíduo inconsciente tem acesso imediato, via internet, a todo o seu histórico médico.

A regra vale para os dois lados, já que os pacientes também têm acesso irrestrito e imediato a seus prontuários, bem como podem saber quem consultou cada uma de suas informações, o que é fundamental pra garantir a segurança e confiabilidade do sistema. Trata-se, portanto, de dar mais autonomia ao cidadão.

O Brasil, com seu tamanho (e seus desafios) de proporções continentais, não é a Estônia, mas ela tem algo a nos ensinar sobre a importância do Open Gov na saúde. A vantagens do modelo vão da maior eficiência, já que a participação cidadã permite desenhar serviços melhor adaptados às necessidades reais da sociedade, até a democratização da saúde, fenômeno atrelado à digitalização, passando pela maior independência do paciente. Os desafios também são bastante claros: garantir a privacidade das informações médicas e investir na alfabetização digital da população, para que ela possa usufruir plenamente dessas vantagens.

E há um ganho “colateral”, por assim dizer, que não pode ser esquecido: o Open Gov representa um impulso à inovação, na medida em que garante o acesso a um conjunto enorme de dados por uma gama de atores sociais – de gestores públicos a estudantes, das grandes empresas de saúde às startups. Implementar o Open Gov na saúde significa que mais cabeças poderão se dedicar à resolução criativa de nossos problemas mais urgentes.

Se vivemos no “século da informação”, é preciso garantir que este seja também o século da transparência. Ideias como o Open Gov estão transformando o paradigma da administração pública, atualizando-a para a era digital. O moderno sistema de saúde brasileiro, fruto de uma constituição que orgulhosamente apelidamos de “cidadã”, não pode ficar para trás.

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