É impressionante como em 2021, após anos da origem dos pacotes, das discussões dos modelos de remuneração … ainda existe quem confunde forma de apresentação de conta com modelo de remuneração:
- Ainda tem gente que pensa que fee for service e conta aberta é a mesma coisa !!!
- A partir daí as discussões que estas pessoas protagonizam é “lambança generalizada” … a gente até perde a vontade de alertar para o erro;
- Em parte estas pessoas fazem esta confusão porque o próprio manual da ANS sobre modelos de remuneração também comete este pecado … ela nem deveria entrar neste tema, diga-se de passagem, porque não é da sua alçada – da sua área de abrangência … mas entra … e comete este erro imperdoável … documentado em forma de manual … “fazer o quê” ?
O gráfico ilustra, dos valores faturados em contas da saúde suplementar, quanto se consegue avaliar analisando exclusivamente a conta:
- Do que pode ser identificado como diárias, taxas, honorários, medicamentos …
- Do que não pode ser identificado, especialmente: pacotes.
É bom iniciar informando, para quem não teve oportunidade de lidar com isso, que o serviço de saúde sempre se obriga a trabalhar com a conta aberta, independente de ser enquadrada e ter que ser apresentada em forma de pacote:
- Primeiro porque não sabe se entre iniciar o atendimento e remeter a conta, o pacote vai prevalecer, ou alguma intercorrência assistencial ou administrativa vai fazer com que a conta tenha que ser apresentada aberta … na verdade não tem nem mesmo a certeza de que a conta será apresentada para a operadora … pode ser apresentada para pagamento direto por parte do paciente/responsável;
- E segundo porque para o serviço de saúde a conta é a base de uma infinidade de controles internos que passam pela auditoria compra x consumo x venda, repasse aos parceiros comerciais que terceirizam parte do que é realizado, repasse aos médicos, repasse aos fornecedores estratégicos;
- Ou seja … para o serviço de saúde que utiliza a conta adequadamente como instrumento de gestão, o pacote não simplifica o processo de formação das contas, e ainda acrescenta uma etapa a mais no processo que é o de converter a conta aberta em pacote para apresentar para a operadora !
O serviço de saúde vai utilizar as contas para benchmarking entre fontes pagadoras, como um dos instrumentos para análise de precificação … enfim … usamos o termo “infinidade” de controles porque são muitos … porque a conta se reveste de consistências (críticas) para lançamentos que dão segurança à gestão em relação à qualidade das informações … especialmente as de internação da saúde suplementar que são auditadas uma por uma e:
- Se o CID não é compatível, não paga … se o CBO não é compatível não paga … se o OPME não é compatível não paga;
- Se “um monte de coisas” não é consistente … não paga … tornando necessário que o resultado final … a conta … seja formado por informações confiáveis: uma base de dados valiosíssima para a gestão.
Hoje em dia … na verdade já há muito tempo … hospitais minimamente organizados não se importam com a complexidade da formação das contas:
- Primeiro porque os processos de formação das contas evoluíram muito … já temos um bom contingente de gestores que sabem o que deve fazer e como devem fazer;
- Nos cursos de gestão do faturamento e auditoria dissecamos o modelo que já está mais do que amadurecido … o modelo deixou de ser um “acho que assim é melhor” e passou a ser “é assim que se faz porque deu resultado em milhares de serviços” já há muito tempo;
- E segundo porque os piores sistemas informatizados de atendimento e faturamento que conheço … os ruins mesmo a ponto da gente perguntar: o que “a pessoa” estava pensando quando fez isso – de onde ele veio ? … até nesses … compor a conta dá pouco trabalho, quando comparamos como era no passado.
A ‘pizza acima” representa os valores das contas apresentadas pelos serviços de saúde para as operadoras, ou seja, internamente o serviço de saúde tem “tudo aquilo esmiuçado” … sorte dele ! … a operadora geralmente não tem … azar o dela !!
Na regra, a gestão comercial das operadoras tem se preocupado em empacotar o máximo possível para controlar preços, mas tem ao mesmo tempo achando que a conta com um número menor de itens só traz vantagens para ela … ledo engano:
- Ter menos itens para auditar, é claro, reduz o custo da auditoria;
- Mas trabalhar com contas fechadas impede que a operadora faça o mesmo uso que o serviço de saúde … ela perde o instrumento de gestão;
- Aos poucos vai perdendo a noção do que compõe as contas de determinado procedimento;
- A base de dados que ela usou quando definiu os pacotes no passado … ela perde … como a prática assistencial evolui, em um tempo não muito longo, ela acaba perdendo a referencia do que se utiliza atualmente para realizar o procedimento;
- Ou seja … ela perde a base de informação com a qualidade que tinha quando definiu o pacote “lá atrás”.
O gráfico mostra que as operadoras estão evoluindo no seu propósito de reduzir o preço:
- A barra da esquerda ilustra o % de itens que aparecem nas contas e identificam o insumo;
- A do meio, o % da quantidade de itens;
- E o da direita, o % do valor;
- Fica claro que a operadora “empacota” menos itens do que o resultado em valor que ela obtém, ou seja, na média quando propõe um pacote está conseguindo reduzir o preço;
- Mas também fica claro que, justamente nos itens de maior valor, na média ela está perdendo o controle do que compõe a conta !!
Esta proporção entre o identificado e o não identificado varia muito regionalmente:
- De 54 % até 94 % é muita coisa !
- E notamos que na “tonalidade mais clara” ou seja, onde os itens estão mais empacotados, ainda é uma minoria de Estados !!
- E também notamos que são características de mercados específicos … não é uma tendência na Região Norte, Sul, Nordeste !!!
- Mesmo estados vizinhos não carregam a mesma tendência … e repare que nem é questão de tamanho … compare ES com RJ … BA com MG !!!!
Haver tanta diferença regional no indicador como mostra o gráfico não representa algo bom ou ruim:
- O “mercado” vai se adequando às “condições do mercado” … é assim que funciona;
- O que é ruim é a operadora renunciar à conta aberta quando consegue fechar o pacote;
- Quando tenho a oportunidade de auxiliar as operadoras neste tema sempre insisto em sugerir que o preço pode ser fechado, mas a conta deve vir aberta;
- Deixe o serviço de saúde compor a conta do jeito que quiser … do jeito que ele faz para suprir sua necessidade interna … apenas o valor final deve ser o que foi pactuado no pacote … apenas isso;
- Assim mitigamos o problema de não saber mais o que está sendo utilizado para realizar o procedimento … mantemos a conta como um instrumento de gestão dos mais importantes para a operadora !
Infelizmente nós temos uma regulação ruim quando se trata de contas … a ANS não é feliz na regulação, porque na verdade este assunto nem deveria estar sendo discutido se a regulação colocasse o paciente no foco … explicando … ilustrando:
- Quando uma montadora de veículos identifica que uma peça do carro pode causar dano depois de algum tempo, ela chama todos os compradores para trocar a peça … isso tem o apelido de “recall”;
- Ela sabe que para produzir aquele lote de veículos foi utilizado o material comprado do fornecedor X, número do lote Y … e é impossível ter utilizado material diferente naquele lote porque, além do processo ter elementos chamados Poka-Yoke que não permitem os erros, um processo adicional ao de fabricação chamado de controle de qualidade existe para aferir se o Poka-Yoke está funcionando !
- Veja … ela não vai procurar o cliente que está com o carro … informa qual peça está com defeito e de qual chassi … é o cliente que percebe que seu chassi está “no rolo” e vai buscar a concessionária !!
Na área da saúde não é assim:
- Não produzimos carros, computadores, eletrodomésticos … os pacientes são diferentes, regionalmente utilizamos insumos diferentes, os profissionais “de escolas” diferentes utilizam técnicas diferentes …
- Neste cenário de diferenças … você pode até saber detalhes sobre a utilização de um OPME em um paciente, porque OPME é rigidamente controlado … pelo preço e não pela preocupação com rastreabilidade;
- Pode até ter um sistema de rastreabilidade dos medicamentos que realmente funcione … mas isso na realidade do Brasil é coisa rara;
- Agora … saber se foi utilizada a seringa do fabricante A ou B naquele paciente específico “beira ao raríssimo” … do lote X do fabricante Z, me desculpe a franqueza, mas é impossível em quase 100 % dos casos no mundo todo;
- Confiar no prontuário para isso … não dá … porque lá no prontuário você vai ver que foi prescrito e ministrado dipirona … qual e o que foi utilizado para ministrar … de forma alguma !
- Além do que, se o serviço de saúde foi vendido para outro: lá se foram os prontuários, ou pelo menos a confiança neles … mesmo que a informação deveria estar nele, e até estejam, os instrumentos de pesquisa para tabular isso são praticamente inexistentes, e quando existem são ineficazes.
Ah se a regulação obrigasse que o paciente saísse do serviço de saúde, independente de qual foi a fonte pagadora (SUS, Operadora ou Particular) … independente se o preço foi pacote ou não … obrigatoriamente com a conta detalhando tudo que foi feito nele … tudo que foi utilizado nos procedimentos realizados nele !
Ou seja … ah se a regulação obrigasse que o paciente saísse com a conta aberta, para a sua segurança !
- Como acontece com “aquela fivela do cinto de segurança do carro”, ele mesmo poderia receber a notícia de que um lote do medicamento X ou do material Y que apresentou problema, e olhando a sua conta buscaria o serviço de saúde … sairia da “zona obscura” de não saber nada sobre tudo que lhe foi injetado, implantado;
- E teria noção do nível de qualidade de insumos que o serviço de saúde utilizou no seu corpo … algum insumo que passou a fazer parte da sua vida;
- E nós não estaríamos discutindo a necessidade da operadora trabalhar com contas abertas, mesmo no caso de preços fechados para pacotes !!
A regulação da ANS, ao invés de caminhar para que isso ocorra, vai no sentido contrário … infelizmente:
- Há muito tempo estigmatizada pela necessidade de simplificar as contas, tem hoje uma regulação onde existem mais códigos de pacotes do que de procedimentos … um absurdo … não acredita: dê uma olhada no padrão TISS “e chore”;
- E com tendência a multiplicar cada vez mais o que já existe …
- O contrário do que faz, por exemplo, o SUS com a SIGTAP: o SUS é mais abrangente que a saúde suplementar e tem uma tabela muito menor naquilo que dizemos que é a intersecção entre os dois sistemas de financiamento !!!
Então, olhando para o gráfico acima:
- Existem Estados em que as operadoras ainda estão preservando sua base de informação sobre o empenho de insumos nos procedimentos, porque não avançaram na negociação de pacotes;
- Em outros pode ser que para determinados procedimentos elas estejam correndo o risco de não saberem as melhores práticas assistenciais atuais … nestes as operadoras vão ter dificuldade para alinhar preços e manter redes credenciadas, conforme o tempo for passando.
Como não existe regulação que exija que as contas sejam apresentadas em forma de pacote para operadoras (pelo menos ainda não … mas da ANS jamais podemos duvidar que faça), para preservar a qualidade da sua gestão em relação a este assunto, a operadora deve aproveitar porque não depende de ninguém … somente dela!
Enio Jorge Salu tem especializações em Administração Hospitalar, Epidemiologia Hospitalar e Economia e Custos em Saúde pela FGV – Fundação Getúlio Vargas. É professor em Turmas de Pós-graduação na Faculdade Albert Einstein, Fundação Getúlio Vargas, FIA/USP, FUNDACE-FUNPEC/USP, Centro Universitário São Camilo, SENAC, CEEN/PUC-GO e Impacta. Coordenador Adjunto do Curso de Pós-graduação em Administração Hospitalar da Fundação Unime. Também é CEO da Escepti Consultoria e Treinamento e já foi gerente de mais de 200 projetos em operadoras de planos de saúde, hospitais, clínicas, centros de diagnósticos, secretarias de saúde e empresas fornecedoras de produtos e serviços para a área da saúde e outros segmentos de mercado.