Imaginem a seguinte situação: um homem de negócios brasileiro viaja para um país europeu para participar de uma importante reunião. Quando está quase aterrissando em Londres, começa a sentir-se extremamente mal, com forte cefaleia, vertigem, vômito e perda da visão de um dos olhos.
Em seguida perde a consciência. Os comissários de bordo não conseguem fazer nada, nenhum médico a bordo. Após o pouso, levado rapidamente para o serviço de emergência de um grande hospital público londrino, continua inconsciente e não há ninguém presente para relatar os sinais e sintomas.
Preciosos minutos são perdidos com exames cardiovasculares, respiratórios e encefálicos, chegando os médicos à conclusão que se tratava de um acidente vascular cerebral hemorrágico. Nada se sabe sobre alergias, patologias ativas, tipo sanguíneo ou qualquer dado da história prévia do paciente.
Finalmente, quando a conduta terapêutica pode ser iniciada, com considerável risco por causa dessas lacunas, já foi tarde demais, e alguns incidentes ocorreram, como uma reação alérgica ao meio de contraste para fazer o exame da ressonância magnética.
Ao retornar ao Brasil, com sérias sequelas, nenhum documento médico o acompanha, e os médicos brasileiros que o atendem precisam adivinhar o que aconteceu, pois o paciente está afásico e confuso.
Uma estória comum? Sim, infelizmente. A falta de informação médica unificada e integrada é uma das maiores causas de efeitos iatrogênicos, com desfechos muitas vezes fatais. O remédio para isso chama-se interoperabilidade, ou seja a capacidade de sistemas diferentes de PEP de intercambiar informações entre si, de forma técnica e automática.
Embora a interoperabilidade seja possível dentro de um determinado país, e muitos a implementaram como sucesso, utilizando padrões de informação como os criados pela organização Health Level Seven International, ou HL7, a coisa é muito mais difícil, e praticamente não existe, quando o intercâmbio e compartilhamento de dados digitais centrados no paciente precisa ocorrer de forma chamada transfronteiriça, como é o caso que eu relatei.
Qual é a solução para uma interoperabilidade transfronteiras? A HL7 International já está trabalhando para criar um padrão com esse objetivo, e trata-se de um documento eletrônico chamado Resumo Internacional do Paciente – ou IPS, em inglês.
O IPS é um extrato de um PEP, contendo informações essenciais de saúde em um cenário de atendimento transfronteiriço não programado, compreendendo alguns elementos mínimos e não exaustivo do conjunto de dados existente, ligados a um paciente. O IPS foi planejado para ser independente de especialidade e de condição de saúde, e que seja prontamente utilizável por médicos para o cuidado não programado internacional de um paciente.
Uma bela ideia, não é mesmo? A especificação do IPS visa oferecer suporte a cenários multilíngues e de diferentes países, incluindo tradução se necessário, principalmente em casos de emergência e atenção não eletiva. Baseia-se em vocabulários internacionais que são utilizáveis e compreensíveis em qualquer país, como o CID da OMS.
Por ser resumido, contendo somente as informações essenciais, significa que um IPS não se destina a reproduzir todo o conteúdo de um PEP. As seis grandes áreas de registro do IPS são: problemas de saúde (patologias pregressas), alergias, medicamentos ativos, procedimentos realizados, imunizações e resultados de exames.
Os modelos de informação utilizados se baseiam em um padrão HL7 denominado Clinical Document Architecture, ou arquitetura do documento clínico, e que já era usado para implementar algo muito parecido com o IPS, que é o CCD, ou Continuity of Care Document, ou documento de continuidade de cuidados, que é o documento de interoperabilidade quando o paciente é movido entre instituições, por exemplo, de um pronto socorro para uma UTI em outro hospital. São situações que têm muito em comum com o sumário internacional, só que sem a visão de globalidade.
Além disso as informações constantes do IPS não são filtradas para uma especialidade. Por exemplo, as alergias não são filtradas apenas para medicamentos cardiovasculares, mas todas são mostradas, inclusive as alimentares, se forem relevantes. Independente da condição significa que um IPS não é específico para condições particulares do paciente, como síndromes e agravos neurológicos, como aconteceu com o caso relatado. Além disso, o escopo do IPS é global, ou seja, precisa funcionar para QUALQUER país, e não apenas para alguns.
O IPS é um grande desafio, o guia de implementação tem que incorporar várias experiências e desenvolvimentos mais recentes em consideração de modo a abordar a viabilidade global na medida do possível. Certamente sua implementação, usando a nuvem e um barramento de interoperabilidade sob demanda, poderá salvar milhares de vida, e permitir instituir prontamente ações diagnósticas e terapêuticas para viajantes internacionais, entre outras aplicações. O Brasil participa dessa iniciativa!
Referências
- HL7 International: International Patient Summary Implementation Guide. 0.0. Disponível na Internet. URL: http://hl7.org/fhir/uv/ips/
- IHE: International Patient Summary (IPS). In: IHE Wiki. Disponível na Internet. URL: https://wiki.ihe.net/index.php/International_Patient_Summary_(IPS)
- Trillium II Project: https://trillium2.eu/
Sobre o autor:
O Prof. Renato Marcos Endrizzi Sabbatini é um dos pioneiros na área de padrões de informação em saúde e interoperabilidade, tendo sido membro fundador e atual vice-presidente e diretor de educação e capacitação profissional do Instituto HL7 Brasil, a afiliada brasileira da HL7 International, da qual participa como representante nacional. Atualmente é professor de informática em saúde e telessaúde em várias universidades e institutos de ensino, e renomado consultor de desenvolvimento e certificação de segurança, qualidade e interoperabilidade de sistemas de informação em saúde. Contato: renato@sabbatini.com
Copyright © 2021 by Renato Marcos Endrizzi Sabbatini. Direitos de reprodução cedidos para o Grupo Mídia.