Posso compartilhar os dados de um paciente no PEP com outros profissionais de saúde?, por Renato M.E. Sabbatini

Existem muitas dúvidas e polêmica com respeito a algo que seria extremamente útil na atenção ao paciente

O advento do Prontuário Eletrônico do Paciente (PEP) tem sido uma revolução progressiva e permanente na forma como a transformação digital do consultório, da clínica, laboratório, hospital, etc. passa a tratar a documentação clínica, que engloba itens como dados demográficos, anamnese, exame físico, resultados de exames complementares, pedidos de exames e procedimentos, encaminhamentos, atestados e interconsultas, plano terapêutico, receitas médicas e de enfermagem, atestados, consentimentos, cobranças de serviços médicos (TISS, por exemplo, na saúde suplementar), e muitos outros.

Todas essas informações pertencem, em primeiro lugar, ao paciente. Os provedores de serviços de saúde e suas instituições são meros guardiães dessa informação, e são regulamentados, limitados e tornados co-responsáveis por várias propriedades dessas informações e seu uso, processamento e armazenamento. Parte dessas responsabilidades são regulamentadas por resoluções e pareceres dos conselhos profissionais, como o Conselho Federal de Medicina, por exemplo. Outro grande domínio é proporcionado por várias leis federais que regulamentam, fiscalizam e punem, em caso de violações, a questão da proteção dos dados pessoais dos pacientes, inclusive os dados sensíveis de saúde, e de que forma os pacientes têm vários tipos de direitos com relação aos seus dados. A mais importante delas é a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), promulgada em 2018, e que tem dois anos para entrar em vigor.

Uma dessas questões é de compartilhamento de dados do paciente entre os vários provedores e instituições com que teve um contato de atenção à sua saúde. Compartilhar dados pessoais, a princípio, é proibido, sem que haja uma autorização do paciente. Da mesma forma, um paciente tem pleno direito de saber quais dados estão armazenados, para que, como e por quem são ou foram usados, etc. Todos esses direitos estão contemplados em várias legislações, mas, voltamos a dizer, de forma mais incisiva e séria, pela LGPD.

Embora essa legislação seja bem rigorosa, ela abre espaço para o compartilhamento de dados pessoais, desde que seja necessário para algum processo, como a atenção à saúde do paciente. Nesse contexto, o compartilhamento é extremamente útil e necessário, por vários motivos. Por exemplo, dentro de um hospital, assume-se que qualquer membro do corpo profissional de saúde ali presente poderá ter acesso aos dados, caso seja necessário. Esse número pode ser constituído de dezenas ou centenas de pessoas, sempre cambiantes e impossíveis de se prever antecipadamente. Já num consultório, ou numa clínica de multi-especialidades, os profissionais que atenderão o paciente são bem mais restritos, delimitados e conhecidos.

Porque o compartilhamento é necessário? Evidentemente, cada novo provedor deve ser capaz de identificar o histórico pregresso deste paciente, sem ter que levantar tudo de novo, de uma forma bem mais completa e armazenada de forma persistente/permanente. Já está comprovado por numerosos trabalhos científicos que o compartilhamento do PEP aumenta a segurança do paciente e diminui erros e omissões dramaticamente. Por exemplo, compartilhamento do histórico de problemas de saúde e sua evolução, os medicamentos ativos para aquele paciente, o histórico familiar, os resultados de exames anteriores, etc. Em alguns desses casos, como na reconciliação dos medicamentos, esse acesso é obrigatório, para evitar contra-indicações, alergias, efeitos adversos e, principalmente, a detecção segura de interações medicamentosas. O acesso aos resultados de exames também permite identificar uma evolução longitudinal, bem como evitar duplicação desnecessária de novos exames.

Outra grande área que exige o compartilhamento, geralmente anonimizado ou pseudo-anonimizado, é relativo aos usos secundários dos dados pessoais, tais como vigilância epidemiológica, estudos científicos, entrada em sistemas de apoio à decisão clínica e inteligência artificial, obtenção de estatísticas (small ou big data), cruzamentos com outras bases de dados, como dados financeiros para operadoras de planos de saúde, e para o próprio governo (CNS, eSUS, etc.). É importantíssimo respeitar as limitações legais e éticas a esse respeito, tal como a autorização do paciente, inclusive quanto à comercialização desses dados (também proibida, a princípio).

Isso posto, o fator fundamental é, então, o consentimento do paciente para o uso e compartilhamento de seus dados pessoais.

Para isso, é necessário que o paciente expresse de forma explícita o seu consentimento livre e esclarecido (CLE), toda vez que for adicionado como pessoa a um sistema eletrônico. Esse consentimento poder ser “urbi et orbi”, ou seja, para todos os profissionais da organização, que o atenderão, ou não, quando não for possível prever, ou para profissionais específicos. O paciente, inclusive pode revogar, aditar, etc., essas permissões a qualquer momento, inclusive negar explicitamente acesso aos seus dados a um ou mais profissionais específicos, ou grupos de profissionais. Adicionalmente, a LGPD coloca que esse consentimento deve ser obtido também para dados armazenados retroativamente no sistema de registro eletrônico de saúde! Em ambos os casos, é fácil imaginar que isso pode ser um enorme, talvez intransponível problema para as organizações de saúde. A regulamentação da LGPD para o setor saúde deverá sanar essas dificuldades, permitindo maior flexibilidade do que é previsto.

É interessante notar, também, que muitos médicos brasileiros se opõem frontalmente ao compartilhamento de dados dos prontuários dos seus pacientes com colegas, por vários motivos: um deles é o receio de ser avaliado negativamente e criticado por seus pares; outro, por incrível que pareça, por não querer ter a possibilidade de ter seus pacientes “roubados” por colegas competidores da mesma cidade! No entanto, o médico não pode impedir o compartilhamento, pelo Código de Ética Médica, se o paciente assim o desejar, e mais: no contexto de uma instituição do qual ele é membro, o guardião dos dados, e que os compartilha entre todos os profissionais, é a instituição, não ele, que detém esse poder. O que ele pode ter, sim, é uma área privativa com suas anotações sobre um paciente, sem necessidade de compartilhá-las, fazendo isso apenas se quiser.

Portanto, em conclusão, respondendo sucintamente à pergunta do título deste artigo: posso compartilhar os dados de um paciente no PEP com outros profissionais de saúde? Sim, deve, e não apenas pode, se for necessário e útil para o atendimento, seguimento, etc. da saúde desse paciente. O software, conforme o processo de certificação de segurança da Sociedade Brasileira de Informática em Saúde, precisa ter essas várias funcionalidades, tais como fornecimento do prontuário e da trilha de auditoria, a pedido do paciente ou seu responsável, permitir ou limitar o acesso aos dados por parte de outros profissionais de saúde, etc. O consentimento do paciente é estritamente necessário e fundamental.

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