Tempo medicinal para a pandemia de insensatez

As doenças se manifestam de modos semelhantes. Os pacientes, porém, são diferentes. É por esta razão que a atuação médica não se esgota ao fazer diagnósticos e tratar doenças. A atividade clínica requer um manejo com arte, no uso do tempo, na imprescindível paciência em busca do diagnóstico e, principalmente, na relação com o paciente. A observação empírica de cada pessoa ao longo do tempo é a raiz mais profunda da atividade clínica. É um poderoso recurso elucidativo, gerando respostas que, invariavelmente, esclarecem diagnósticos complexos. Sintomas e sinais, anormalidades de parâmetros biológicos e alterações em imagens radiológicas precisam e devem ser observados e interpretados à luz do tempo, além de se considerar as singularidades do ser humano.

Com a entrada da expansão tecnológica na seara médica, uma maravilhosa oferta de tecnologias tem deslumbrado os profissionais de saúde. Inúmeras diretrizes têm sido traçadas e revisadas em função da incorporação de inovações técnicas com potencialidades para detecção de doenças antes mesmo das manifestações clínicas da enfermidade. Hoje, dispomos de meios sofisticados para identificar doenças sem o aparecimento de sintomas. Todavia, dentro deste contexto, a tradicional engenhosidade no raciocínio clínico do médico passou a ser alvo de desinteresse, e junto a isso o exame físico, a conversa, a história, o contato e tudo que é importante para se estabelecer empatia na relação médico-paciente tornou-se ofuscado e aparentemente desnecessário, diante das potencialidades das máquinas.

“Estaríamos vivendo a reengenharia na medicina? A inteligência artificial ocupará a primordial função do ato médico: o diagnóstico? Eis uma questão curiosamente assustadora!”

Não é difícil notar que a formação médica, radicalmente calcada no uso de tecnologia, tem produzido profissionais com limitações, uma vez que a prática clínica fica cerceada ao restrito mundo das doenças. Em verdade, o universo da tecnologia médica é exclusivamente destinado ao âmbito da identificação e intervenção na doença, onde a atuação médica tende a pautar-se no reducionismo mecanicista. Paradoxalmente, este mundo da tecnologia tem induzido alguns equívocos diagnósticos com frequência. As máquinas podem contribuir com a diminuição de erros diagnósticos relacionados à imperícia na detecção de anomalias, em contrapartida, a inabilidade clínica em se adequar a anomalia ao indivíduo e ao contexto singular de cada vida pode favorecer a imprudência decorrente da hipervalorização destas anormalidades detectadas. A história humana expõe, sistematicamente, que não se pode negligenciar o poder de dano da tecnologia, que requer discernimento para um uso consciente e adequado.

Interagir com o ser humano e não com seu rótulo, tratar o doente e não a doença. São formas de atuação que precisam inspirar o médico. Os diagnósticos, quando contextualizados à luz da particularidade do indivíduo, podem ter a dimensão e a importância transfiguradas, permitindo uma nova leitura da doença. Faz-se necessário ponderar que a determinação de diagnósticos sem a enfermidade clínica não é uma conduta inócua que possa ser adotada indiscriminadamente. Os equívocos na rotulagem de doentes têm gerado exageros terapêuticos, além de provocar adoecimento em quem gozava de saúde e não estaria sujeito ao risco pressuposto. Isto tem ocorrido em uma proporção considerável.

É relevante acrescentar que os desperdícios e abusos difamados no sistema da saúde são viabilizados e até estimulados por este modelo clínico. Foi assim que se disseminaram ações puramente técnicas de investigação e detecção de anormalidades biológicas, que ganhou a proporção de uma pandemia de insensatez, com baixa efetividade no que tange aos reais benefícios à saúde em seu sentido mais amplo. Não se trata de denunciar que há um conflito entre os avanços tecnológicos e a atividade clínica. Em verdade, são recursos complementares preciosos e imprescindíveis. Se há um erro, é supor que um pode substituir o outro. A questão essencial é observar o que tem se desnudado diante das inovações técnicas. Primeiro, é um certo fascínio infantilizado pelas máquinas; segundo, é a desconsideração quanto ao imponderável (afetos, intuição, respeito), ações tipicamente humanas; e terceiro, é a desconsideração quanto ao raciocínio clínico, elemento indispensável na prática médica.

Encontrar um entendimento harmonioso entre o método clínico e o aparato técnico poderá ser o grande segredo de sucesso para um futuro modelo de atenção à saúde.

*artigo escrito por Celso Visconti Evangelista é Superintendente Médico da Qualicorp.

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