Tudo o que é sólido desmanchará no ar

Que seja imortal enquanto dure, e que só dure enquanto produzir
felicidade… Falando de prédios, obviamente. E de hospitais, particularmente.

Prédios não são importantes, importante é o que acontece dentro deles. Prédios de um lado, Vida do outro, entre eles a Arquitetura, pensamento, organização e desenho do espaço, mediadora da relação entre os dois. Pensar o espaço, pensar a vida, a sociedade e a tecnologia, porque tudo que acontece, acontece no espaço.

Estamos, de fato, pensando e construindo para o que está acontecendo? Hospitais são dinâmicos. Hospitais são flexíveis. Hospitais são feitos para durar pelo menos 50 anos. Hospitais precisam ser sólidos para serem seguros. Mantras ou dogmas de planejamento físico e projeto de edifícios de saúde, exaustivamente repetidos nas últimas décadas. Ainda válidos, mas como todo clichê, empobrece o pensamento, e sem pensamento não há arquitetura.

Dinâmica tem a ver com movimento e movimento pressupõe referencial. Qual é o referencial? Se for uma residência, um museu, até alguns prédios comerciais, hospitais sempre tiveram programas mais dinâmicos e necessidades de transformação mais intensa. Por outro lado, se considerarmos o potencial e o estágio da evolução da tecnologia e inovação, sobretudo em saúde, formas de gestão e organização do trabalho, hospitais estão quase estáticos, tentando sair da inércia da sua solidez.

Hospitais devem ser flexíveis para acompanhar a sua dinâmica. Ao longo do tempo, os edifícios de saúde mais buscaram do que encontraram a flexibilidade, que sempre foi relativa e, até sacrificável em nome de vontades, boas ou más, imposições de programas e normas e restrições de custos e rotinas operacionais. A velocidade da necessidade nunca foi acompanhada pela velocidade da solução, mas ambas eram baixas e, logo, uma alcançava a outra. Com o tempo a velocidade da solução foi ficando mais baixa e a velocidade das mudanças necessárias, mais alta.

Hoje, quando a solução alcança a necessidade, ela já mudou. O ciclo de produção do espaço de um hospital, da necessidade até a implantação, dura anos. Processos de gestão do tipo “gato escaldado” com foco no controle, para o bem e para o mal, tendem a congelar projeto e obra, mesmo quando estes precisam ser alterados, atualizados e melhorados, inclusive para redução de custos de implantação e operação.

Durante muito tempo, a solidez foi o maior valor de uma construção. Prédios sólidos que abrigariam a solidez da vida que queremos eterna. Sólidos para simbolizar a solidez de nossas instituições, nosso poder, nossas verdades e nossas mentiras. Prédios para atravessar gerações, contando a nossa história, preservando nosso legado. Ambiente de projetos e obras de hospitais, organizações complexas e de poder multifacetado, tem matrizes de responsabilidade difusas, confusões e conflitos de atribuições. Não é raro que nos ambientes de decisão de infraestrutura, obra ou projeto, ainda se procurar a solidez, a “qualidade” de 40 anos atrás, a perpetuação de soluções conhecidas porque elas sempre funcionaram, a fuga do novo, associado ao risco, tão grave como o risco de morte.

Há uma tendência a tratar hospitais como edifícios mais diferentes do que realmente são, trata-lo como se fosse um paciente frágil, tão frágil quanto o mais frágil de seus pacientes, vulnerável, incapaz e que precisa ser, mais do que cuidado, vigiado e protegido do perigoso mundo criativo. Vistos ou concebidos como máquinas que curam, onde qualquer desvio dos preceitos e normas de fluxos e assepsia pode matar, precisam se esforçar para lembrar que são espaços humanos e hospitaleiros. Liberdade concedida e restrita para fachadismos ou interiores mais elaborados para denotar requinte ou criar a ilusão de que não se está num hospital e sim num hotel, portanto não se está doente, se está em férias!

Hospitais, independente de sua eficiência, sempre estiveram na retaguarda da implantação de medidas modernizadoras de administração e gestão do espaço físico. De modo geral, hospitais são ambientes conservadores, aprisionados na solidez de soluções consagradas. Arquitetura e Engenharia, ao adotarem, equivocadamente, o sobrenome “hospitalar”, acabaram incorporando ou, se submetendo, demasiadamente, a esse conservadorismo. Na outra ponta, naquilo que o espaço do hospital abriga, a saúde é um dos campos com mais potencial e ações de inovação, de mudanças de conceito, processos, tecnologia e concepção de negócio.

Já, já, teremos um abismo entre o conteúdo e o continente, porque as necessidades de organização de espaço que a sociedade demanda vem numa velocidade muito maior que nossos hospitais e edifícios de saúde dinâmicos, flexíveis e sólidos podem acompanhar. Precisamos falar de outra dinâmica, mais dinâmica, de outra flexibilidade, mais flexível e, de uma solidez, menos sólida. É preciso que o espaço do hospital seja uma resposta aos problemas de espaço que estão se colocando agora e serão cada vez mais inéditos. Antes de tudo, será necessário entende-los, porque os problemas precedem as soluções. E a solução será adaptável e readaptável, com baixo impacto operacional, com segurança, e de forma sustentável econômica e ambientalmente.

Como será o espaço de saúde da telemedicina? Da internet das coisas, com todos os elementos da construção gerando informações o tempo todo? Como conversar com essas coisas? Como reagir ao excesso de informação? Que espaços vão surgir dessa interação?

Há uma nova metodologia e habilidades a serem desenvolvidas para que a Arquitetura aplicada a hospitais ou, a qualquer outro prédio, mantenha a sua relevância. Uma pedra no meio do caminho, enfrentado por todas as esferas da sociedade. Como ser mutante sem ser irrelevante, como contar a história se desmanchando e deixando de criar identidade e referência? Não se pode subvalorizar a capacidade do homem de construir novos modelos, que vão passar pela mudança de ambiente, de cultura, de liberdade de criação e de compromisso com a melhoria e a evolução. É preciso construir ambientes que favoreçam a inovação, o pensamento e a geração de soluções novas para problemas novos, exeqüíveis, sob medida para as demandas que serão cada vez mais específicas. Não haverá solução padrão, novos conceitos serão produzidos. E um prédio feito para durar um ano com a máxima eficiência, poderá ter mais valor do que um outro, sólido, feito para durar eternamente.

Um caminho está na essência da Arquitetura. Pensar e desenhar o pensamento e construir e aprender com o construído e redesenhar, esquecendo as soluções prontas ou dogmáticas. Das coisas nasceram coisas e continuarão a nascer. Se a modernidade é liquida, se o amor é líquido, se o tempo e a vida são líquidos, precisamos beber dessa fonte.

Artigo escrito por Henrique Jatene, arquiteto do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP (InCor) 

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