“Padrinho da conta hospitalar existe na operadora, mas na prática não no hospital”, por Enio Salu

 

Referências: Geografia Econômica da Saúde no Brasil e Jornada da Gestão em Saúde no Brasil

(*) todos os gráficos e ilustrações são partes integrantes do Estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil e do material didático dos cursos da Jornada da Gestão em Saúde e da Escepti

Em qualquer empresa, quando uma venda tem valor elevado, alguém fica responsável em realizar o mais rapidamente possível … bem … em qualquer empresa, menos na maioria dos hospitais.

As figuras ilustram parte do que discutimos no segundo encontro de um programa de atualização de gestores dos hospitais da Unimed do Estado de São Paulo na última sexta-feira – o programa que “embarca” 54 gestores de 32 hospitais diferentes – uma grande honra para mim poder estar fazendo parte dele !

O processo de formação da conta na alta complexidade … sem fazer trocadilho … é complexo !

  • Deste processo de formação vai ser faturada uma conta de 10, 20, 50 … 100 mil reais;
  • Em qualquer empresa, um produto que será vendido por mil reais obrigatoriamente tem um responsável, que se preocupa desde o momento em que o cliente dá sinal de que vai comprar, até que a fatura seja emitida, passando pela preocupação com a forma como ele foi atendido em todo o processo … recepção, área técnica, caixa … se preocupa com qualquer detalhe que possa interferir na realização de uma receita de mil reais;
  • Na maioria dos hospitais a conta vai se formando enquanto o paciente vai sendo atendido, mas ninguém se responsabiliza se ela está sendo adequadamente carregada, e na alta o faturamento complementa de acordo com a “experiência do faturista” … se existir auditor interno, então é corrigido algo que “a experiência do auditor” indica … e se a conta não sai, ou se sai com valor errado, inacreditavelmente fica tudo bem;
  • Na maioria dos hospitais se alguém aponta algum erro de uma conta que foi apresentada e paga “a menor”, é comum todos os envolvidos “levantarem a mãozinhas e dizer: a minha parte está certa” … e fica por isso mesmo !

Quando a gente inicia um projeto de redesenho do processo de faturamento e começa dizendo que cada conta tem que ter “um padrinho (ou madrinha)” que se responsabilize pela realização da receita olham para a gente como se estivessem vendo “o capeta” ! … cada um diz: precisa que a enfermagem deixe de errar … que a farmácia deixe de errar … que o faturista deixe de errar … e assim vamos escutando cada um dizendo que garante o que faz, mas os outros … sempre os outros … não se engajam, erram, precisam de capacitação … e quando estão todos presentes em uma mesma reunião, a probabilidade é que “acabe sobrando pro sistema” … e vida que segue !

Uma parte dos projetos de consultoria não anda, porque o desenvolvimento do faturamento hospitalar … lá atrás … quando a saúde suplementar “começou a pegar” … o faturamento sempre foi desenhado como sendo uma atividade operacional, e não de gestão … entendendo …

Faturamento é atividade simples de faturar … como um caixa de supermercado:

  • Se o produto passou pelo caixa fatura, senão não;
  • Se alguém consumiu ou inutilizou o produto dentro da loja “não é problema do caixa”;
  • Se o filé mignon está com etiqueta de preço de acém não é problema do caixa;
  • Se uma embalagem de 5 produtos está com código de 1 produto não é problema do caixa;
  • Até se uma pessoa sair com o carrinho pela entrada sem passar pelo caixa não é problema do caixa … é do segurança !

Gestão do faturamento é diferente:

  • É faturar o máximo possível;
  • É se preocupar em transformar tudo o que foi produzido em receita … não perder 1 centavo da receita;
  • Não é “levantar as mãozinhas” se não é possível faturar pela falta de alguma evidência … é corrigir o processo de modo que a falta de evidência não ocorra !!

Tem uma infinidade de hospitais, por exemplo, que contrata “um sistema especialista” complementar ao HIS para apontar o que falta faturar e “joga dinheiro lixo”:

  • Não que o sistema não seja bom … que não é recomendável gastar com isso;
  • É que ele fica apontando o que falta, mas na prática a maioria do que ele aponta não é ajustado nas contas;
  • O faturista na prática sabe o que falta em cada conta, mas necessita que alguém faça algo … que na maioria das vezes não é feito … geralmente associado à produção de um prontuário de paciente de péssima qualidade;
  • E não tem ninguém para fazer com que as pessoas façam o que se deve fazer … o sistema só serve para perpetuar o entendimento de que os erros são sistêmicos, ou seja, perpetuam o ciclo de apontar o erro e não consertar o processo;
  • E … pior … não tem ninguém para dar manutenção na  parametrização deste sistema … da forma como é implantado fica eternamente instalado … vai se desatualizando a cada minuto !
  • O que acontece com qualquer sistema informatizado: sem gerenciar o sistema, o resultado é sempre pífio … sistema informatizado não resolve nada se não existe estrutura adequada de gerenciamento dos processos e do sistema !
  • Resultado: um “caminhão de perda debaixo do tapete” … a empresa fica perdendo tempo com “as formiguinhas” (seringas, agulhas, bolinhas de algodão …) enquanto “os elefantes pastam fartamente” (procedimentos, taxas, intercorrências, exames …).

Em uma loja de automóveis, por exemplo, a venda depende de vários profissionais:

  • A recepção que encaminha o cliente para o vendedor mais especializado naquele tipo de venda;
  • O vendedor, é claro;
  • O preparador do veículo de exposição … que deve estar “nos trinques para aguçar o apetite” do comprador;
  • A retaguarda financeira que vai pegar o pedido e formalizar a venda;
  • A retaguarda técnica que vai preparar o veículo que o comprador comprou;
  • A retaguarda financeira que vai fazer todos os trâmites legais …

Mas o vendedor é figura central em tudo isso:

  • Primeiro porque é o ponto de contato com o comprador, e deve conhecer o produto que está vendendo sob o ponto de vista do comprador;
  • Segundo porque como ele vai entregar o veículo, faz follow-up de todas as etapas com todos os envolvidos, eventualmente alterando a agenda e “ouvindo um monte” do comprador se qualquer coisinha der errada;
  • Se a venda for cancelada, o vendedor pode perder o emprego, diga-se de passagem !

A figura ilustra os macroprocessos de formação de uma conta hospitalar na alta complexidade:

  • Comparando com uma concessionária de veículos, a quantidade de processos é absurdamente maior;
  • A quantidade de envolvidos é absurdamente maior;
  • A chance de haver um erro é “estratosfericamente maior”;
  • E na maioria dos hospitais “não tem nenhum vendedor” gerenciando a conta, que pode ter valor maior do que a de um carro … as vezes absurdamente maior !!

Operadoras de planos de saúde agem de forma diferente:

  • O auditor da conta faz este papel, não em relação ao que a operadora está vendendo … mas em relação ao que ela está comprando;
  • Ele faz a gestão “da compra do carro de luxo” … tudo tem que estar nos trinques … senão glosa !

Nós sempre exemplificamos a figura do padrinho/madrinha da conta com uma planilha:

  • No momento em que o paciente é internado, o padrinho/madrinha é atribuído e fica responsável pelo sucesso da realização da receita;
  • Se tiver pendência … resolve “ou endereça” para alguém resolver, e acompanha se está sendo resolvido;
  • E faz isso “no mais tempo real possível” … ou seja … acompanha a conta desde a internação, conforme as coisas vão acontecendo … e assim, se tiver algum problema fica muito mais fácil resolver !

Infelizmente a maioria dos hospitais … ainda hoje … em 2022 … com sistema informatizado … com prontuário eletrônico (mesmo que parcial) … ainda hoje o processo de faturamento inicia depois que o prontuário chega ao faturamento … depois da alta do paciente:

  • É inacreditável … porque se for escolher o pior momento para faturar a conta, é depois que o paciente já foi embora;
  • Os erros são difíceis de consertar … o prazo para compor a conta e entregar dentro do cronograma é menor e naturalmente a pressa “deixa debaixo do tapete um monte de lançamentos”;
  • Com o tempo escasso para entregar a conta, os erros de valores pequenos são negligenciados … “vamos dar prioridade no que tem valor maior” – se é que me entende !
  • E o hospital ainda perde a oportunidade de cobrar o paciente o que a operadora não cobre, ou se nega a pagar … porque cobrar do paciente enquanto ele está no hospital já “tem emoção” … depois que ele foi embora … “um abraço!” como dizem lá no interior !!

Se a conta não tem padrinho/madrinha … se não existe o controle da conta em tempo real:

  • Ficamos em uma rotina de identifica erro, corrige … identifica, corrige … identifica, corrige …
  • E o erro sempre continua porque o que estamos fazendo é faturamento … e não gestão do faturamento.

O controle de contas que indica pendências, “abre uma janela de oportunidades”:

  • Tabular os erros mais comuns … a origem …
  • E poder apresentar para o responsável da área origem estatisticamente o que ocorre de errado e … mais importante … muito mais importante … o quanto estes erros significam na receita do hospital;
  • Quando se perde … ou quanto tempo se atrasa a remessa … ou quanto se gasta parta consertar.

Isso acaba fazendo com que os próprios gestores de cada área envolvida se engajem em corrigir os processos que geram os erros, que é muito mais importante do que corrigir o erro de cada conta.

E nos dá a oportunidade de aferir a própria produção dos envolvidos na formação, fechamento, auditoria e remessa das contas:

  • É comum a gente ouvir alguém criticar o outro … “fulano é o abelha: quando não está voando está fazendo cera !” … sabe como é ? … “fulana fica para lá e pra cá com o mesmo papelzinho na mão o dia todo e ninguém sabe o que é” … já ouviram isso quantas vezes ?
  • Estes comentários maldosos desaparecem quando a gente tem números … quantas contas, quantas pendências, quantas pendencias de cada tipo, quantas resolvidas;
  • Assim fazemos gestão do faturamento … com indicadores objetivos e não de forma subjetiva porque “o meu santo não bate com o dele” !

Invariavelmente com a atribuição do padrinho/madrinha, controle de contas e indicadores de pendências descobrimos que um colaborador que “não tem o dom da palavra”, se é que me entende, produz “milhão de vezes” mais do que o outro que “canta e dança que é uma beleza” !! … enquanto o “bonitinho só fica com o filet”, o outro é “feinho porque tudo que é bomba cai no seu colo” !!!

E olha que nem citamos aqui (mas discutimos no curso com os hospitais da Unimed do Estado de São Paulo) que boa parte da receita que passa pelo hospital não é dele … é de terceiros:

  • Faturar errado, deixar de faturar, atrasar o faturamento … de dinheiro que é do médico (por exemplo) e está dentro da conta é algo que se reveste de muito stress;
  • Tem dinheiro de fornecedor também (OPME, medicamento de alto custo …);
  • O hospital não atribuir um responsável pela conta e perder seu dinheiro é ruim … mas ter um médico, um fornecedor, um parceiro de negócios “buzinando na orelha” porque “a conta isso”, ou “a conta aquilo” … é mais do que ruim;
  • Qualquer administrador hospitalar sabe bem o que isso significa !

Fechando o cenário:

  • Se a certificação da qualidade avalia se os profissionais assistenciais têm e se utilizam de POPs … mas não avaliam se faturistas e auditores estejam inseridos no mesmo tipo de cenário;
  • Se o processo de formação das contas não é padronizado da mesma forma como os procedimentos assistenciais o são;
  • Não existir um responsável por uma conta de milhares de reais enquanto ela vai se formando, desde o início do ciclo de atendimento do paciente, especialmente em hospitais que realizam procedimentos de alta complexidade … é “perda mais do que certa” … só não vê quem não quer !

Bem … perdi a conta de quantos projetos de consultoria nesta área já conduzi … alguns deles deram muito errados, porque quebrar o paradigma de que a conta pode ser formada “por osmose” não é coisa fácil … é “um ranço” de décadas que exige muita determinação da gestão para ser quebrado.

Graças a Deus, os que não deram certo foram minoria … e naturalmente “machucaram” … mas a recompensa de ter visto o resultado dos que deram certo valeu … vale … muito a pena!

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