Como garantir mais transparência nas relações entre indústria e profissionais de saúde, em um país onde a legislação federal ainda não oferece critérios claros sobre o que deve ser reportado? Esse foi o principal ponto discutido na palestra “Sunshine ACT e o PL 7990/17 – O setor de equipamentos e dispositivos médicos”, promovida pela ABIMED durante a Hospitalar 2025, a maior feira de saúde da América Latina.
Mediado por Jorge Khauaja, diretor de Comunicação e Compliance da ABIMED, o debate contou com a participação de Ana Beatriz Montanheiro, diretora jurídica da Johnson & Johnson MedTech Brasil, e Gustavo Biagiolli, sócio do escritório Trench Rossi Watanabe.
Ambos apontaram os desafios enfrentados pelo setor diante da ausência de uma legislação federal consolidada sobre o tema e destacaram o papel estratégico da autorregulação para garantir mais clareza e segurança nas interações da indústria com médicos e outros profissionais da saúde.
Biagiolli destacou a complexidade da definição do que é considerado um “profissional da saúde” dentro da legislação atual. “É alguém com CRM ativo? E se for diretor de uma associação de pacientes, mas não estiver com o registro no conselho em dia? Ainda assim, pode ter influência sobre decisões clínicas ou de aquisição. Falta objetividade”, afirmou.
Segundo ele, essa indefinição cria um cenário instável, em que algumas empresas reportam interações e outras não, deixando o setor em uma “zona cinzenta”.
Ana Montanheiro complementou lembrando que, ao comparar com a legislação norte-americana — o Sunshine ACT, que inspirou o PL brasileiro —, percebe-se um nível de detalhamento muito maior nos Estados Unidos, inclusive sobre quais profissionais são incluídos e quais valores devem ser reportados.
“Lá, qualquer interação acima de 10 dólares precisa ser registrada. No Brasil, sequer temos consenso sobre o que seria um valor representativo: é um café? Um almoço? Um presente de R$ 20? Essa subjetividade dificulta muito”, disse.
A executiva também defendeu que o caminho mais viável neste momento seria fortalecer a autorregulação por meio das associações do setor.
“A gente vê esse movimento acontecer em outros países da América Latina, como Chile e México, onde as associações vêm ganhando protagonismo e estabelecendo critérios próprios de transparência mesmo antes da lei. Isso dá mais segurança para as empresas e evita a pulverização de leis estaduais com exigências distintas.”
Nesse ponto, Jorge Khauaja reforçou que a ABIMED está revisando o seu Código de Conduta com o objetivo de lançar uma nova edição em 2026, no ano em que a associação completa 30 anos.
“Estamos iniciando essa revisão com o desafio de amadurecer o debate sobre autorregulação mesmo antes de termos uma base federal legal consolidada. A pergunta é: já dá para avançar como setor, sem depender do Estado?” Biagiolli acredita que sim.
Para ele, o amadurecimento da indústria é pré-requisito para qualquer avanço real e sustentável.
“Nos Estados Unidos, o Sunshine ACT só prosperou porque o mercado já vinha de uma trajetória de escândalos e aprendizados. Lá, a indústria percebeu que precisava se reorganizar. No Brasil, precisamos seguir esse caminho sem esperar que tudo venha do governo.”
Além disso, o advogado lembrou que a legislação nunca será capaz de acompanhar a velocidade com que surgem novas formas de interação entre indústria e profissionais.
“A inovação corre na frente. A lei, qualquer que seja, vai sempre chegar depois. Por isso, a consciência ética e a capacidade de autorregulação são tão fundamentais.”
Ao encerrar a discussão, os participantes destacaram que não se trata de “demonizar” as interações entre indústria e profissionais da saúde — afinal, são elas que permitem que novas tecnologias e tratamentos cheguem aos pacientes.
O problema surge quando há falta de transparência e conflito de interesses, o que pode gerar decisões que não priorizam o bem-estar do paciente.
“É importante lembrar que o objetivo de tudo isso é proteger quem mais importa: o paciente. Quando a decisão médica é influenciada por interesses que não são clínicos, todos perdem. A transparência é uma ferramenta para garantir que essas relações sejam éticas, legítimas e benéficas para todos os envolvidos”, finalizou Montanheiro.
A discussão promovida pela ABIMED mostra que o setor está disposto a avançar por conta própria. Com autorregulação, transparência e diálogo constante entre indústria, profissionais e associações, é possível construir um ambiente de mais confiança e integridade — mesmo diante da lentidão legislativa.