A aplicação de ferramentas como estudos in silico, evidências do mundo real (RWE) e modelos de decisão multicritério (MCDA) no campo da Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) foi tema central de uma das palestras mais provocativas da programação exclusiva promovida pela ABIMED durante a Hospitalar 2025, a maior feira de saúde da América Latina.
O debate reuniu representantes da indústria, academia e governo, com a proposta de avaliar como essas abordagens podem apoiar decisões mais eficientes, baseadas em evidências robustas, especialmente no setor de dispositivos médicos, onde ainda há grande resistência e lacunas regulatórias.
Participaram da discussão Anderson Fernandes (Strattner), Fotini Toscas (Conitec), Felipe Dias Carvalho (ABIMED), Murilo Contó (Boston Scientific) e Priscilla Lemes (Comitê Nacional Brasileiro).
Para Priscila, os estudos in silico — que utilizam simulações computacionais para prever o desempenho de tecnologias em cenários clínicos — vêm ganhando maturidade, especialmente no setor farmacêutico, mas ainda encontram barreiras significativas quando se trata de dispositivos médicos.
“Nunca se trata de substituir os ensaios clínicos, e sim de complementá-los. Mas o desafio é que o ciclo de vida regulatório não acompanha a velocidade da evolução tecnológica. Você aprova um modelo hoje e, daqui a dois anos, ele já está ultrapassado. Como lidar com isso?”, provocou.
Ela destaca que a falta de familiaridade técnica por parte dos reguladores é um dos entraves. “A inovação é rápida, mas a regulação ainda caminha lentamente.
Precisamos de mecanismos que ajudem a qualificar essa conversa entre quem desenvolve e quem aprova as tecnologias.”
Uma resposta possível a esse impasse é o guia recém-publicado Good Simulation Practice, que traz propostas de boas práticas para a construção, validação e submissão regulatória de estudos in silico.
Inspirado nas Boas Práticas de Fabricação, o documento aponta quatro caminhos principais para incorporar essas simulações aos processos regulatórios:
- Pré-certificação do software como dispositivo médico, viabilizando seu uso para testar outras tecnologias.
- Validação técnica externa, por meio de entidades acreditadas como o Inmetro.
- Criação de estruturas regulatórias específicas para simulações – opção mais complexa e custosa.
- Ajuste de rotinas já existentes, com a inclusão de especialistas em simulação dentro das agências.
Priscila também apontou a necessidade de um novo perfil de profissional, capaz de dialogar com as áreas clínica, regulatória e de engenharia.
“Temos que formar equipes multidisciplinares que compreendam minimamente todos os elos da cadeia de avaliação.”
Representando o setor público, Fotini Toscas, da Conitec, deu uma perspectiva realista sobre os desafios internos para incorporar essas abordagens.
“O problema nem sempre é técnico. Muitas vezes é político. Existe sobrecarga, múltiplas prioridades, infraestrutura limitada. Nem sempre o que está na agenda é o que tem mais potencial, mas o que grita mais alto naquele momento”, afirmou.
Ela lembrou que há demandas acumuladas, como a revisão de diretrizes clínicas antigas — algumas datam de 2013 — que precisam ser atualizadas antes de novas metodologias entrarem em pauta. “Muitas vezes é mais urgente rever o que já existe do que aprovar algo totalmente novo, cujo impacto ainda é incerto”, disse.
Ainda assim, Fotini vê sinais de avanço. Segundo ela, o fato de um projeto de pesquisa sobre estudos in silico ter sido aprovado recentemente em um edital público — concorrendo com temas prioritários como oncologia e doenças raras — mostra que há interesse crescente na área. “A gente ficou muito animada. São cinco projetos grandes em andamento, e só esse tem financiamento complementar, o que já é um diferencial enorme.”
Do lado da indústria, Murilo Contó (Boston Scientific) reforçou que a geração de evidências por parte do setor regulado pode ser decisiva para mudar esse cenário.
“Quando mostramos dados sólidos, baseados em metodologias reconhecidas, conseguimos abrir caminho para o diálogo com as agências. A proposta não é substituir etapas, mas ajudar a torná-las mais eficientes.”
Felipe Dias Carvalho, da ABIMED, ressaltou o papel que a própria associação pode exercer como articuladora.
“A indústria pode liderar esse movimento. Podemos propor oficinas, projetos-piloto e até desenvolver frameworks que sirvam de referência para os reguladores. Se não vem de dentro do governo, pode vir de fora, com resultados concretos em mãos.”
A discussão se encerrou com a expectativa de novos encontros. Em breve, uma oficina com a rede de Núcleos de Avaliação de Tecnologias em Saúde (NATS) será realizada para aprofundar o tema.
“A sinalização positiva já existe. Agora é questão de construir pontes, gerar evidência e manter o tema vivo na agenda”, concluiu Priscila.