“Sem data de validade, pacotes geram seletividade e elegibilidade”, por Enio Salu

(*) todos os gráficos e ilustrações são partes integrantes do Estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil e do material didático dos cursos da Jornada da Gestão em Saúde e da Escepti

Puxa ! … lá se vão 10 anos que comecei a estudar mais profundamente a inflação hospitalar … guardo bem o ano, porque foi o ano que publiquei meu primeiro livro (Administração Hospitalar no Brasil, Editora Manole, 2012).

E ainda não temos um instituto que publique de forma oficial o índice … ainda tenho que calcular com o que tenho … com os dados que consigo coletar junto aos hospitais que algum dia fiz consultoria, e são solidários em me auxiliar no cálculo !

É bom iniciar chamando a atenção de que este texto se referencia à “inflação hospitalar”:

  • Que é muito diferente da “inflação da saúde”, que por exemplo nas operadoras, é medido pela variação da sinistralidade;
  • Apesar da variação da sinistralidade ter como base a inflação hospitalar, não depende somente dela, porque a atenção à saúde não se dá exclusivamente no ambiente hospitalar … muito pelo contrário … a maioria dos atendimentos que geram a sinistralidade ocorre fora dos hospitais !

O ano 2021 foi completamente fora da curva, por ter sido o “primeiro ano cheio da pandemia”, e nele termos vivido o “horrível olho do furacão” batendo recordes inimagináveis de óbitos diários … e é claro … repercutiu na inflação hospitalar.

A inflação hospitalar a gente só pode calcular aplicando a variação de preços de forma ponderada nos volumes de insumos utilizados:

  • Não adianta fazer uma média de preço de aquisição de dipirona, seringa e cateter venoso central … como fazem os economistas quando calculam a variação da cesta básica fazendo a média da variação do preço do tomate e do arroz;
  • Se fizer isso, não considerando o quanto se consome de cada produto, o resultado final é um estudo de tendência de inflação … não afeta todos da mesma forma e tem uma grande chance de não afetar especificamente qualquer um !
  • Pode o cateter venoso central aumentar 1.000 % e a agulha 1 % … e a inflação não é 500,5 % … porque não se consome a mesma coisa de tomate e arroz … a variação do preço do arroz pesa muito mais “no bolso do pobre” que é a maioria da população brasileira, do que os privilegiados que podem “encher a sacola de tomate” !
  • Se aumentar o preço do ingresso para assistir ao jogo do Corinthians, Palmeiras, São Paulo … não faz a menor diferença para mim que não assisto o jogo deles !!

A ANS erra absurdamente, por exemplo, ao indexar o preço dos planos de saúde por um desses itens … é inexplicável ela utilizar um índice que mede tendência como parâmetro para reajuste de preços de inflação real … e ainda o mesmo índice para todo o Brasil … é inacreditável que milhões de profissionais e empresas tenham que se sujeitar a tamanho absurdo … mas infelizmente, assim é a agencia reguladora da saúde suplementar no Brasil !!!

Calculando de forma ponderada a variação dos preços dos insumos na área hospitalar, ou seja, considerando a variação de preços e uma boa amostra para estimar o consumo, chegamos a uma inflação hospitalar de 34,83 % em 2021.

Qual o índice de confiança deste indicador ?

  • Não é elevadíssimo … é claro !
  • Para ser elevadíssimo teríamos que calcular com informações de consumo em uma “massa” significativa entre os +/- 8.500 hospitais … este cálculo, considera cerca de 20 hospitais diferentes … em cerca de 30 estabelecimentos;
  • Mas me atrevo a dizer que o nível de confiança não é baixo … porque na amostra existem hospitais que representam bem a realidade da região que atuam, e “embarcam” praticamente todas as especialidades médicas.

Mesmo com viés, considerando que IPCA, IGP-M e INPC que é calculado a partir de uma média de preços não ponderada:

  • É inegável que a inflação hospitalar é muito maior que a média do mercado dos outros segmentos da economia;
  • E no meu convívio com dezenas de administradores hospitalares durante a pandemia, sou testemunha viva do “drama” que eles enfrentaram … e continuam enfrentando … porque a pandemia não acabou … ainda morre mais gente de COVID-19 somente no Brasil do que na criminosa guerra na Ucrânia !
  • E o normal pós pandemia, não tem a menor chance de ser o mesmo normal de antes da pandemia … o perfil epidemiológico da população mundial mudou e vai demorar muitos anos para retornar ao que era antes !

Para quem não tem o meu privilégio de conviver com administradores hospitalares … acredite:

  • Não está sendo fácil para este “tipo de ator representar o papel”;
  • Os preços dos insumos “ensandeceram”;
  • O gráfico compara a variação média geral ponderada de preços de aquisição entre o mês de 2021 e o mesmo mês do ano anterior (2020);
  • A gente percebe claramente que “durante o olho do furação” em 2021 houve falta de insumos de alto consumo, e os preços foram “lá na lua” … depois foram gradativamente retroagindo, conforme a procura foi se equalizando novamente com a oferta … mas uma retroação dentro de um indicador muito elevado … o menor índice desta série é muito grande !
  • Quem nunca lidou com gestão de serviços de saúde não tem a menor ideia do quanto isso é prejudicial para a sustentabilidade … o stress do administrador é gigante porque precisa entender e ter certeza de que é uma condição de mercado, ou algum descontrole interno que dispara compras de urgência … e invariavelmente “são as duas coisas” ao mesmo tempo … parte dos insumos se enquadram nisso, parte naquilo;
  • “Que dureza” … a variação de preços dentro de uma parte da infinidade de insumos que compõem os estoques hospitalares é um dos piores pesadelos que o administrador tem que lidar na rotina … não são meia dúzia de insumos para produzir 30, 50, 10º produtos diferentes … são dezenas de milhares para produzir dezenas de milhares de produtos diferentes !!

Analisando somente os materiais (não os descartáveis), vemos a evolução mensal com percentuais “completamente descolados” de qualquer índice oficial:

  • Quer ganhar dinheiro ? Não aplique na bolsa, em dólar, em euro …
  • Considere fazer um estoque de material hospitalar quando o dólar “der uma abaixadinha” ! … como está acontecendo agora de forma circunstancial … interesses fazem com que a “gangorra seja eterna” … investidores adoram isso !!

A variação real de preços de aquisição entre 2020 e 2021 foi “estratosférica”.

Está estranhando os materiais descartáveis ?

  • Lembre-se de quanto custava uma mera máscara descartável antes da pandemia e agora;
  • Mas não esqueça de considerar que não foi somente o aumento do preço … que já seria suficiente para explicar …
  • … a utilização de descartáveis “entre que triplicou e quadruplicou” em uma ano … e este indicador considera o volume !

Estranhando medicamentos ?

  • Deve se lembrar dos anestésicos para entubação que apareceram na mídia … lembra ?
  • Mas se fossem somente eles os administradores “tirariam de letra” … “comeriam com farinha, como se diz quando se joga truco” … mesmo medicamentos de uso comum, mais baratos … o aumento exacerbado do preço de aquisição “viralizou”;
  • O preço de uma infinidade de medicamentos é indexado pelo dólar, que disparou nos últimos anos, devido a uma política econômica que “nem Freud explica” …
  • … e os fretes aumentam não somente por conta do aumento do diesel, que “Freud também não explica de jeito nenhum”;
  • Carga mais cara: frete mais caro … seguro do frete mais caro … e o que se rouba de medicamento no Brasil “é uma ignorância” … prêmio do seguro “lá em cima” !

Inflação Hospitalar é um tema muito oportuno para mim porque foi tratado no terceiro encontro do programa de capacitação de gestores dos hospitais da Unimed do Estado de São Paulo que ocorreu ontem !

Um dos pontos de atenção importantes da inflação hospitalar é a viabilização dos pacotes de procedimentos na alta complexidade … nos hospitais:

  • Se hospital e operadora fecham o pacote e não definem data de validade … se o reajuste de preços é com base em um índice oficial … aqueles percentuais insignificantes em relação à inflação hospitalar que o primeiro gráfico ilustra …
  • … ou o hospital “paga” para fazer o procedimento … ou deixa de fazer … não tem escolha !

Para deixar de fazer, ele se utiliza de 2 recursos:

  • Seletividade … aceita o reajuste do preço … parece que está tudo bem … mas nunca abre agenda … nunca tem médico, ou vaga, ou sala disponível para realizar o procedimento do pacote;
  • Elegibilidade … até tem vaga … mas somente para os pacientes que para o determinado tratamento naturalmente consomem menos pelo seu perfil demográfico / epidemiológico … ou somente para os médicos que aderem aos protocolos rígidos utilizando apenas o que o hospital disponibiliza …

Porque não tem como um pacote ser reajustado, por exemplo, por um IPCA de 10,06 %, continuar dando sustentabilidade para um custo “tão mais elevado” de 35 %… a medicina evoluiu bastante … mas mágica ainda não se tem conhecimento que seja possível fazer em hospitais !

Em uma relação comercial justa … quando as partes estão em uma relação de parceria … os pacotes têm data de validade:

  • Findo o período de validade as partes não “sentam” para negociar o reajuste do preço … sentam para avaliar a sustentabilidade do pacote;
  • Porque se não for sustentável, a seletividade e elegibilidade é “líquida e certa” … e todos perdem com isso;
  • O hospital que deixa de produzir … a operadora que pensa que tem rede e não tem … o beneficiário que vê seu tratamento atrasar, ou ser realizado com qualidade duvidável … todos perdem !

Bem … neste terceiro encontro tive a oportunidade de discutir o tema com mais de 50 gestores de mais de 30 hospitais de diferentes Unimeds:

  • Como são gestores de hospitais em uma operadora, pudemos discutir simultaneamente com a visão de quem está nos dois lados da mesa de negociação … um grandiosíssimo privilégio para poucos, que só tenho que agradecer a oportunidade … a cada interação com profissionais gestores, mais aprendo;
  • E o terceiro lado … o do fornecedor … espero ter feito o papel de forma imparcial na discussão … completando o cenário como ele merece ser entendido … estudado ! … o pacote jamais pode interferir na técnica, inibir a inovação em saúde … quem pensa o contrário sempre acaba perdendo … a experiência me mostrou isso muitas vezes … ninguém me contou !!

No encontro, em relação aos pacotes, não nos limitamos a discutir somente a inflação que corrói o preço:

  • Discutimos fatores comerciais … que são concorrentes e complementares;
  • E discutimos a evolução da técnica … que evolui constantemente … fazendo com que a formalização do pacote hoje seja bem diferente do que ocorre na realidade com o procedimento amanhã !
  • A necessidade de rever o pacote, e não simplesmente reajustar o preço, não se limita somente ao reajuste do preço dos insumos;
  • A técnica evoluiu … medicina é uma das coisas que mais evoluíram na história … a técnica muda … senão estaríamos até hoje usando “sanguessugas”

Valor “relaxar” ilustrando a questão da técnica com a substituição das sanguessugas por medicamentos ?

  • Imagine um biotério de sanguessugas em mais de 100 mil serviços de saúde … graças a Deus não, não é verdade ?
  • Incluir um código TUSS ou SIGTAP para sanguessugas;
  • ANS e SUS classificando os tipos de sanguessugas e normas regulatórias para seu uso na medicina;

Tem gente que gostaria que a técnica não evoluísse para ser tecnocrata de sanguessugas;

  • A brincadeira com o exemplo exemplifica como é muito mais caro cuidar dos “bichinhos” ao invés de comprar um medicamento … imagine o custo do controle necessário para zelar de forma segura de um zoológico dentro do ambiente hospitalar ! … tudo que envolveria o descarte seguro após o uso …

Não é porque inicialmente a inovação possa custar mais caro que a mudança de técnica necessariamente aumenta o custo:

  • É só lembrarmos como eram caros alguns procedimentos antes da surgimento da videolaparoscopia … dos antibióticos de última geração
  • De uma série de tecnologias inovadoras que quando entraram eram mais caras, mas mudaram completamente a forma de tratar determinadas doenças, reduzindo o custo global no médio e longo prazos;
  • Além de proporcionar maior resolutividade no tratamento e melhoria da qualidade de vida do paciente … que como é o “lado assistencial da coisa” … o “leigo aqui” nem se atreve a comentar !

Pacotes têm um enorme potencial, e o volume ainda é baixíssimo em relação ao que poderiam ser … para mudar este cenário os gestores dos três lados da mesa precisam “quebrar” paradigmas e tratar o assunto de forma profissional … principalmente se não forem utilizados como barreira para impedir a incorporação da melhoria da assistência, que deve ser a “prioridade zero” de qualquer gestor da saúde pública ou privada, de fonte pagadora, de serviço de saúde, de fornecedor, de órgão regulador, de entidade de classe … é para isso que serve gestão da saúde !

Data de validade é um destes paradigmas … na minha experiência profissional também sou testemunha do quanto “quem está nos vários lados da mesa” e os pacientes ganham quando se “libertam deste preconceito” de que os pacotes, após formalizados, devem ficar “intocáveis até que a morte os separe” !

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