Judicialização no sistema de saúde brasileiro: consequências e soluções

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

O trecho acima é utilizado como embasamento em vários processos judiciais envolvendo tanto a Saúde Suplementar quanto o Sistema Único de Saúde (SUS). Entendido como princípio fundamental, o direito à saúde se tornou um xeque-mate para pleitear alegações diversas e pressionar o Judiciário ao seu cumprimento, inclusive em prazos ínfimos, como no caso das medidas liminares, em que o juiz tem 72 horas para análise da demanda.

Segundo o Painel de Estatísticas Processuais de Direito da Saúde, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2022 foram identificados 460 mil novos processos judiciais sobre saúde no Brasil, sendo destes, 164 mil referentes à saúde suplementar.

As consequências da judicialização predatória são diversas e extremamente deletérias para a sustentabilidade a longo prazo do sistema de saúde brasileiro, sendo estas:

A utilização do Poder Judiciário como ferramenta da Administração Pública: há o desvio da sua função principal, de garantir os direitos individuais, coletivos e sociais e resolver conflitos entre cidadãos, entidades e Estado, causando disparidade entre os três Poderes.

Sobreposição do direito individual ao coletivo: o impacto social decorrente do fornecimento de medicamentos de alto custo e o dever do Estado nesta seara, a dignidade da pessoa humana e o princípio da reserva do possível ainda são temas passíveis de discussão teórica e pouco avanço prático.

Desequilíbrio orçamentário: prejuízo no ordenamento de recursos pelo Estado; envolvimento de entidades federativas e de seus agentes públicos, causando carga orçamentária extra; danos à previsibilidade e equilíbrio dos custos afetando a eficiência na gestão financeira a longo prazo; abalo financeiro nos programas e nas políticas públicas de saúde.

Sobrecarga judiciária: acesso ao Judiciário de maneira desigual por aqueles que possuem acesso à informação em detrimento daqueles que aguardam atendimento pelas vias coloquiais, fragilizando decisões judiciais e abrindo espaço para análises contraditórias da Lei, possibilitando a violação do acesso igualitário aos direitos à saúde.

Ausência de análise técnica adequada para incorporação de novas tecnologias: decisões judiciais forçam a disponibilização de terapias que ainda não foram testadas a contento para embasar sua acurácia, fragilizando os pacientes quanto à sua real eficácia.

Ações em curto prazo para mitigar a avalanche de ações judiciais perpassam pela adoção da mediação e da conciliação como porta de entrada para a resolução de conflitos, colocando o Judiciário em uma instância superior, apenas em casos nos quais não houve hipótese de acordo, reduzindo o número de processos judiciais, custos litigantes e propiciando que a população conheça um outro método para resolver suas demandas em saúde, mais rápido, econômico e transparente.

O fortalecimento de órgãos de proteção ao consumidor possibilita que questões que frequentemente são levadas ao Judiciário, como falta de clareza de cláusulas contratuais, negativas de cobertura de procedimentos médicos e hospitalares, entre outras, possam ser resolvidas em um funil prévio, priorizando a relação de consumo.

A utilização do E-NATJUS possibilita que os magistrados tenham acesso a fundamentos científicos e ao embasamento técnico necessário para tomada de decisões assertivas lastreadas em medicina baseada em evidência e não apenas em laudos médicos.

Além da própria gestão efetiva e da regulação suficiente e adequada dos sistemas de saúde, que por si só, são mecanismos preventivos e resolutivos, possibilitando a otimização e acesso aos recursos disponibilizados aos cidadãos já existentes, mitigando a busca pelo Judiciário.

Considerando que a judicialização não será reprimida por meio de atuações nichadas, e sendo um fenômeno que reflete a interseção entre as deficiências do sistema público de saúde e a busca individual por acesso a tratamentos e medicamentos adequados, é imperativo adotar abordagens mais abrangentes e sustentáveis, que envolvam aprimoramento do sistema público de saúde, políticas de regulação mais eficazes e transparência nas decisões judiciais relacionadas à saúde. Somente assim poderemos avançar na composição de um modelo de cuidado idôneo, igualitário e íntegro para a população brasileira.

 

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